Como trabalham os roteiristas dos games que inspiram Hollywood
Em uma reviravolta fundamental, games passaram a servir de base para o cinema graças à qualidade das narrativas interativas criadas por esses profissionais
No cinema, há um consenso entre historiadores e críticos sobre a pedra fundamental que estabeleceu o padrão do roteiro moderno. Trata-se de Viagem à Lua, obra-prima do cineasta francês Georges Méliès (1861-1938) lançada em 1902. A partir daquele filme mudo cheio de truques e reviravoltas, as tramas ficaram mais complexas. No mundo dos games, é mais difícil definir um marco para essa etapa do processo criativo. O que se sabe com algum grau de certeza é que, a partir da década de 1990, com o avanço das tecnologias, os jogos foram ficando mais elaborados e até interativos. Muitas das escolhas narrativas são deixadas na mão dos jogadores, que podem interferir no final e obter uma experiência única a cada partida. Hoje, há uma variedade enorme de histórias tão magnificas que – eis uma bela novidade – até Hollywood tem buscado roteiristas nas franquias de sucesso. A série Fallout, Sonic, Mortal Kombat e Uncharted são exemplos recentes. Por enquanto, é ofício dominado por profissionais estrangeiros, que ganham salários a partir de 100 mil dólares por projeto rabiscado.
Assim como o cinema e a televisão, o game também é uma plataforma audiovisual usada para ricas fábulas. A grande diferença é como cada pessoa pode interferir na obra, criada justamente para receber influência externa. “O roteiro se encaixa dentro do design de um game e anda de mãos dadas com as mecânicas e as seções interativas do jogo”, diz Vicente Martin Mastrocola, professor na graduação de Jogos Digitais da PUC-SP.
Por isso, há diferenças fundamentais no processo de escrita de um roteiro para videogame em comparação com outro, mais tradicional, para um filme ou série de TV (leia no quadro ao lado). Há elementos da escrita para jogos desafiadores, mas gratificantes quando bem feitos. “É bonita a harmonia entre os elementos da narrativa que podemos chamar de tradicional – diálogo, cinemática, personagens, construção de mundo – com os elementos interativos, que são exclusivos dos games”, diz Darby McDevitt, diretor narrativo do game Assassin’s Creed Valhalla, da Ubisoft, ambientado na época dos vikings. Plataformas mais poderosas permitem a criação de costuras mais densas e abrem espaço para a participação de atores reais, que emprestam aparência e voz, um modo ainda mais fascinante de atrelar o totalmente imaginário a alguma coisa do mundo real.
Há um pouco de tudo, dependendo da vontade de cada jogador em mergulhar em uma aventura mais ou menos intrincada. Em um jogo de luta, por exemplo, sua única escolha será o personagem escolhido. Em outros, como Red Dead Redemption 2, da Rockstar, há um fio condutor principal, mas é possível enveredar por inúmeras estradas. Cada pessoa encontrada no enorme cenário e cada cidade espalhada pelo mapa tem algo a revelar. O modelo, conhecido como “mundo aberto”, é o mesmo usado por franquias famosas, como Far Cry e Assassin’s Creed, ambos da Ubisoft. Há ainda jogos puramente narrativos, focados na história. Em geral, esses títulos têm múltiplos caminhos possíveis e até finais completamente distintos que dependem das escolhas do jogador. “Acho os jogos com histórias ramificadas os mais difíceis de todos porque exigem que a equipe desenvolva mais de um arco dramaticamente interessante e comovente… e um deles já é bastante difícil!”, diz McDevitt.
Não por acaso, a riqueza narrativa dos videogames e seus autores atrai gente grande do cinemão. Antes, adaptações de jogos eram sempre feitas sem muito esmero. Agora, têm atraído elogios da crítica e do público. A série The Last of Us, da HBO, que bebe dos jogos, é um exemplo. A lista de estreias de 2024 inclui novidades, como o filme baseado na franquia pós-apocalíptica Borderlands. Depois dos quadrinhos, os games é que começam a inspirar os blockbusters.