Quando as forças russas cruzaram a fronteira com a Ucrânia, em fevereiro de 2022, os funcionários da GSC Game World, uma empresa de desenvolvimento de jogos eletrônicos com sede em Kiev, tiveram de interromper um projeto no qual estavam trabalhando havia quase uma década. Era a sequência de um clássico de 2007, o Stalker, jogo de sobrevivência que retrata as consequências de um segundo desastre nuclear em um país devastado pela guerra. Em um movimento desesperado de busca por segurança, desenvolvedores foram realocados para Praga, na República Tcheca, e Budapeste, na Hungria. Mesmo com as interrupções e atrasos no desenvolvimento de Stalker 2, o título foi finalmente apresentado no início do mês na feira Summer Game Fest, em Los Angeles, e tem data de lançamento prevista para início de setembro.
A interseção entre a realidade e a ficção diz muito sobre a popularidade dos videogames de guerra, especialmente em tempos de grandes conflitos na Europa Oriental, no Oriente Médio e na África. A história da GSC é um caso único, em que a emergência da invasão russa interferiu no desenvolvimento do jogo ucraniano, influenciou na sua narrativa e no modo como acabou sendo promovido. O título final ficou sendo Stalker 2: Heart of Chornobyl. A opção por mudar a grafia de Chernobyl, do russo, para Chornobyl, como os ucranianos pronunciam, teve como objetivo reforçar a identidade nacional dos desenvolvedores. “O jogo é um elemento tão cultural quanto os filmes, quanto os livros, quanto a música”, disse a VEJA Vicente Mastrocola, professor de jogos digitais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Desde que se popularizaram, no início dos anos 1990, com o lançamento de Wolfenstein 3D, brincadeira de tiro em primeira pessoa ambientada na Segunda Guerra Mundial, os videogames bélicos ficaram cada vez mais sofisticados. Os gráficos precários em 2D deram lugar aos cenários em terceira dimensão, que trazem ambientes e personagens com profundidade e textura. A experiência orientada para a ação deu espaço para a estratégia, exigindo habilidades como gerenciamento de recursos materiais e humanos. Por fim, a precisão histórica, que muitas vezes ficava em segundo plano, abriu alas para recriações detalhadas de batalhas, unidades e armamentos. Tudo isso, sem que os jogadores sofram sequer um arranhão. “Os jovens estão muito mais preocupados com a estratégia do que com qualquer outro aspecto desses jogos”, diz a psicóloga Ivelize Fortim, professora e pesquisadora da PUC-SP.
É o que impulsiona o gênero. Originalmente lançado em 2003, o shooter Call of Duty tornou-se uma das franquias mais bem-sucedidas e populares de todos os tempos, acumulando uma receita de 30 bilhões de dólares ao longo de sua existência. Assim como as sequências anteriores, o mais recente capítulo, Black Ops 6, com previsão de lançamento para outubro, mantém uma forte conexão com eventos que foram parar em manchetes. O novo jogo, ambientado nos anos 1990, retrata um cenário de instabilidade mundial, marcado pelo fim da Guerra Fria. Apesar de referências à Guerra do Golfo, com aparição de George Bush e Saddam Hussein, os desenvolvedores resistem em mencioná-la diretamente. “No fundo, é puramente uma história fictícia”, afirma Yale Miller, diretor de produto da Treyarch, estúdio adquirido no ano passado pela Microsoft.
Os jogos de guerra, uma variação dos games de estratégia em que os jogadores se envolvem em conflitos militares, reafirme-se, são elementos seminais de uma indústria multibilionária e altamente rentável que emprega milhares de pessoas ao redor do mundo — até o ano passado, estimava-se o faturamento em cerca de 185 bilhões de dólares por ano. Battlefield 2042, Halo Infinite, Rainbow Six Siege e Escape from Tarkov são alguns dos títulos mais populares dos últimos anos, com experiências de batalhas em grande escala, mundos abertos, jogo de esquadrão tático e sobrevivência. Esse tipo de game pode ser divertido, mas é crucial utilizá-lo com responsabilidade, observando classificações indicativas, variando as atividades e, decisivo, evitando mergulhar nesses cenários sem o devido contexto. Conhecer a história, ler livros e reportagens profissionais é sempre um bom caminho.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899