A civilização no martelo: o leilão da incrível coleção do cofundador da Microsoft
Documentos e computadores de Paul Allen mostram retrato das mudanças aceleradas entre o fim da Segunda Guerra e os anos 2000
Quanto vale um arrependimento? Exatos 3,9 milhões de dólares, algo em torno de 21,7 milhões de reais. Foi esse o valor pago, na semana passada, em um leilão da casa Christie’s, de Nova York, por uma carta escrita por Albert Einstein para o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, em 2 de agosto de 1939. Não era uma missiva qualquer. O mais celebrado cientista do século XX — àquela altura já vencedor do Nobel pelos estudos com a física quântica —, pacifista até o último fio dos cabelos desgrenhados, recomendava ao americano, na antessala da Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento de um programa nuclear, porque a Alemanha caminhava para uma bomba atômica. “No decorrer dos últimos quatro meses, tornou-se provável estabelecer uma reação nuclear em cadeia em uma grande massa de urânio pela qual grandes quantidades de energia e grandes quantidades de novos elementos semelhantes ao rádio seriam geradas. Parece certo que isso possa ser alcançado no futuro imediato”, escreveu o alemão, a quatro mãos com o húngaro Leó Szilárd. O resto é história, com o início do Projeto Manhattan, liderado por Julius Robert Oppenheimer, personagem central de um blockbuster de Hollywood no ano passado. Einstein diria depois, sucessivas vezes, ter sido o grande erro de sua vida — pelo qual se lamentaria.
A milionária correspondência (“indício do profundo impacto da tecnologia na sociedade”, na definição do texto de apresentação da Christie’s) faz parte de um lote de 150 unidades levado ao martelo: é parte da coleção de Paul Allen (1953-2018), empresário e filantropo, fundador da Microsoft ao lado de Bill Gates, leitor ávido, guitarrista amador de excelência e sobretudo visionário, capaz de intuir antes o que os outros veriam depois. A memorabilia de Allen é uma linha do tempo da revolução tecnológica que ele mesmo acelerava.
Há leilões extraordinários, reveladores da vida íntima de personagens fundamentais da sociedade, como os de Freddie Mercury, o vocalista do Queen que morreu em 1991, e o de Elton John, que se desfez de suas coisas para levar vida menos ostentatória e colorida. A exposição pública das aquisições de Allen tem uma outra camada, única e reveladora: era como se ele mesmo incrementasse as transformações, ao desenvolver computadores pessoais, e fizesse dos objetos ultrapassados pela engenhosidade totens de um tempo pretérito. Dito de outro modo: ele fazia andar a locomotiva e, logo em seguida, tratava de guardar na garagem as traquitanas que tinham sido atropeladas, sem pena nem pompa.
É o caso dos imensos mainframes (um DEC PDP-10 de 1974 foi negociado a 189 000 dólares), do Apple Lisa, de 1983 (882 000 dólares), e de um Pac-Man grandalhão, daqueles que ficavam em fliperamas (10 000 dólares). Resumo da ópera: Allen, de mãos dadas com Gates e concorrentes como Steve Jobs, puxava a linha do tempo, fazendo velho o que mal tinha nascido. O resultado final da oferta da Christie’s: 18 milhões de dólares, agora com compradores que preferiram se manter no anonimato e que levaram pedaços da civilização que começou com as linhas tortas de Einstein e culminou, por ora, na internet, nas redes sociais, nos smartphones e na inteligência artificial. Mas vem mais por aí, é óbvio, embora nunca, na trajetória da humanidade, tenham se dado tantas mudanças em tão pouco tempo, a partir do fim da guerra e da virada para os anos 2000 — mais do que no século XV, quando o alemão Johannes Gutenberg desenvolveu a máquina de impressões feita com tipos móveis, ou no apagar das luzes do século XIX, momento em que o americano Thomas Alva Edison acendeu a primeiríssima lâmpada elétrica, e nada seria como antes.
Allen, que gostava de refletir o que desfilava diante de seus olhos — em postura diferente da de Gates, de pôr a mão na massa, e ponto — intuía viverem um período decisivo e voraz. “O possível está sendo constantemente redefinido”, dizia. “Preocupo-me profundamente em ajudar a humanidade a avançar.” Preocupava-se, também, sabemos agora, em deixar um legado de conhecimento, como se fosse uma enciclopédia viva de inovações erguidas para melhorar o cotidiano — e, claro, acender o perigoso rastilho de pólvora de indagações éticas em torno do amanhã.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911