A borboleta deseja voar: a hora e a vez do Bluesky?
Após ser comprado por Elon Musk, o X tornou-se tão nocivo que abriu caminho para a emergência de outras redes
A humanidade tem uma característica singular. Originalmente, tendemos a nos agrupar em comunidades menores, não em grandes aglomerações. Naturalmente, nos reunimos em torno de trabalho, laços familiares ou afinidades específicas, sempre selecionando os indivíduos mais adequados ao ambiente. Nas últimas décadas, porém, ocorreu uma transformação radical. Um experimento, hoje sobejamente comum, congregou quase toda a população em um único território: as redes sociais. Familiares, amigos (e inimigos), profissionais, amantes de esporte e líderes internacionais começaram a compartilhar memes, informações, registros de viagem e posicionamentos políticos. Concretizava-se a “aldeia global”, conceito visionário do filósofo canadense Marshall McLuhan, idealizado ainda nos anos 1960.
Entre as várias plataformas que possibilitaram essa convergência, o Twitter se destacava como a mais influente no debate público, mesmo não sendo a mais numerosa, superada pelo Facebook. O ambiente virtual, objetivo e conciso, propiciava uma interação democrática entre cidadãos, lideranças políticas, comunicadores e artistas. Tudo orquestrado por um algoritmo projetado para manter os usuários ativos, reforçando suas convicções e alimentando sutilmente um ressentimento em relação a pensamentos divergentes — estratégia fundamental para o almejado engajamento. Esse modelo prevaleceu por aproximadamente uma década, até que Elon Musk adquiriu a plataforma em 2022 e, sob o pretexto de defender a liberdade de expressão, a transformou em um instrumento para comercialização de publicidade e propagação de posicionamentos pessoais. Agora, depois de intensa disputa por sua herança, parece emergir um sucessor natural, por ora.
Quando Musk desafiou legislações brasileiras e britânicas, ou aceitou integrar a equipe do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, diversos usuários contrários ao empresário abandonaram a rede, renomeada como X. Quase unanimemente, migraram para o Bluesky, plataforma desenvolvida por Jack Dorsey, o mesmo idealizador do antigo Twitter. Sua proposta inicial era ser descentralizada, sem um proprietário único ou algoritmo exclusivo. Contudo, esse aspecto técnico pouco importa aos usuários. O atrativo reside justamente na nostalgia dos primórdios da rede original, sem conflitos nem propaganda e, crucialmente, com uma moderação de conteúdo destinada a eliminar discursos de ódio.
Impulsionada por esse movimento, a plataforma — cuja logomarca é uma borboleta azul, em sutil lembrança ao passarinho daquela outra — recebe atualmente cerca de 1 milhão de novos usuários diariamente, incluindo veículos de comunicação, parlamentares e influenciadores, fundamentais para dominar as discussões. Evidentemente, não está imune a tolices. “Porém, para se consolidar como sucessora do X no debate público, será necessário alcançar uma escala maior”, disse a VEJA Matt Walsh, diretor da escola de jornalismo, mídia e cultura da Universidade de Cardiff.
De fato, a rede social continua menor que o X e o Threads, concorrente vinculado à Meta. A ver se terá real capacidade de expansão. Isso não significa que o Bluesky (ou mesmo o X) seguirá o destino do Orkut — plataforma criada pelo engenheiro turco Orkut Büyükkökten, que nos anos 2000 representou um período menos tóxico das interações digitais, quando as redes sociais eram percebidas como ambientes mais amigáveis. O que os analistas projetam é um retorno à fragmentação historicamente natural. “As diferentes mídias sociais tendem a coexistir”, afirma Renan Alfenas, doutorando em sociologia pela Universidade Federal Fluminense e membro do grupo de pesquisa em Discursos, Redes Sociais e Identidades Sócio-políticas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “Cada uma desempenhará funções específicas, atendendo a públicos diversificados.” Apesar das utopias digitais, desmoronou a quimera de uma torre de Babel virtual e unificada. “Essa experiência, de uma única praça pública, parece não ter dado certo”, diz João Senna, pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital. O Bluesky pede passagem, mas convém estar sempre vigilante, de modo a não desandar — e atento ao que virá de novo.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922