Entre os jovens que não se identificam com o sexo atribuído no nascimento hospitalizados nos Estados Unidos, 66% vivenciaram tentativas de suicídio ou automutilação em 2019. Em comparação, apenas 5% das pessoas sem disforia de gênero são internadas pelos mesmos motivos, de acordo com um estudo publicado no The Lancet Child & Adolescent Health.
O estudo analisou mais de 2 milhões de casos de jovens, de 6 a 20 anos, hospitalizados por qualquer motivo e determinou quantos estavam relacionadas a tentativas de suicídio ou autoagressão, para aqueles com e sem diagnóstico de disforia de gênero, conhecido pelo desconforto persistente com características sexuais ou marcas de gênero que remetam ao gênero atribuído ao nascer.
Jovens transgêneros e não-binários sofrem discriminação que tem sido associada a pensamentos suicidas ou tentativas de suicídio e automutilação em estudos anteriores que pesquisam populações ambulatoriais, mas as evidências existentes sobre quantas pessoas acabam hospitalizadas são limitadas. Este estudo é o primeiro a usar um grande banco de dados de pacientes internados representativos nacionalmente para entender a relação entre disforia de gênero e tentativa de suicídio e autoagressão.
“Como prestadores de cuidados de saúde, temos uma oportunidade única de reduzir a discriminação, prestando cuidados que afirmem o gênero a estas crianças quando estão hospitalizadas”, afirma Nadir Yehya, do Hospital Infantil da Filadélfia e autor da investigação. “Isso inclui abordar os pacientes usando seus nomes e pronomes afirmados, vinculando-os a cuidados médicos de afirmação de gênero e serviços de apoio social e implementando serviços de acompanhamento direcionados para automutilação”.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que passou a ser conhecido como DSM-5, classifica disforia de gênero como distúrbio mental. Assim, ele deixou de usar o termo transtorno de identidade de gênero e transgênero por não ser o termo médico correto, usando, portanto, disforia de gênero. No entanto, a transgeneridade é considerada um transtorno de identidade de gênero pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, e, no Brasil, é essa classificação que garante às pessoas transgênero o direito à terapia hormonal, psicoterapia e à cirurgia de redesignação sexual.
O estudo usou o banco de dados de internação infantil nacional nos dois anos disponíveis mais recentes, 2016 e 2019. Ele incluiu 80% de todas as altas pediátricas nos Estados Unidos, totalizando mais de 3 milhões de pacientes em ambos os anos. Para identificar jovens transgêneros ou não-binários, procurou-se por pacientes diagnosticados com disforia de gênero ou qualquer outro rótulo que se referisse à condição. Essa categoria teve maior prevalência de tentativas de suicídio em comparação com aqueles sem disforia de gênero em 2016 (36% versus 5%) e 2019 (55% versus 4%). Da mesma forma, a prevalência de autoagressão foi maior em jovens hospitalizados com disforia de gênero em ambos os anos (13% versus 1% em 2016 e 15% versus 1% em 2019).
Olhando para ambos, jovens hospitalizados com disforia de gênero tiveram quatro a cinco vezes mais chances de praticar automutilação ou tentativas de suicídio em comparação com aqueles sem disforia de gênero. Em 2016, 41% dos jovens hospitalizados com disforia de gênero experimentaram tentativas de suicídio ou autoagressão em comparação com os outros 6%. Em 2019, subiu para 66% contra 5%.
Embora a proporção geral de jovens com disforia de gênero tenha permanecido baixa, aumentou significativamente de 2016 (0,16%) a 2019 (0,48%). Os autores dizem que isso provavelmente se deve ao aumento da compreensão e aceitação social de diversas identidades de gênero, bem como ao aumento do acesso a serviços médicos e de saúde mental de afirmação de gênero.
Os jovens que eram negros, hispânicos ou latinos, ou outros grupos étnicos e raciais minoritários, subsidiados publicamente ou de famílias de baixa renda tinham menos probabilidade de serem diagnosticados com disforia de gênero. Isso não significa necessariamente que a disforia de gênero seja menos comum entre esses grupos, mas pode refletir desigualdades no acesso a cuidados de afirmação de gênero ou maior discriminação em certos ambientes, o que torna menos provável que jovens de minorias raciais ou economicamente desfavorecidas sejam diagnosticados.
Aqueles com diagnóstico de disforia de gênero também eram menos propensos a serem do sul dos Estados Unidos ou de hospitais rurais. Os autores creem que essas desigualdades regionais levantam preocupações sobre o aumento dos níveis de discriminação dentro e fora dos ambientes de saúde em determinados locais, o que pode estar impedindo os jovens de se identificarem. Também pode significar que os provedores de saúde em hospitais do sul ou rurais estão menos preparados para fornecer cuidados de afirmação de gênero. Isso destaca o impacto que a cultura e as políticas regionais e estaduais podem ter na determinação dos resultados de saúde.