‘Sexo não funciona se a saúde física e a emocional não estiverem cuidadas’
Carmita Abdo, uma das maiores especialistas em sexualidade do país, fala sobre a relação entre a prática e o bem-estar do corpo e da mente

Para a ciência, não há mais dúvidas: tabu ou não, o sexo tem uma forte relação com a saúde. E é uma via de mão dupla. Enquanto a prática pode fazer bem para o corpo e para a mente, disfunções orgânicas podem diminuir a libido – causando frustração nos desavisados.
A constatação ganha força agora, mas há décadas as pesquisas conduzidas por Carmita Abdo jogam luz sobre a importância da saúde sexual. Psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ela coordena o Programa de Estudos em Sexualidade do Hospital das Clínicas da capital paulista, um grupo multidisciplinar cujo objetivo é melhorar a vida dos pacientes.
Em entrevista para reportagem especial de VEJA sobre o tema, ela respondeu a perguntas sobre frequência ideal, principais dificuldades e os comportamentos que estão moldando as novas maneiras de vivenciar a sexualidade. A íntegra pode ser lida a seguir.

Um artigo recente associa maior frequência sexual com menor risco de depressão. Isso é novo? Esse tema é antigo. Desde o lançamento do Viagra em 1998 nos EUA, começaram a aumentar o número de estudos relacionando doenças físicas e psíquicas a problemas sexuais. Desde então sabemos que sexo não funciona se a saúde física e emocional não estiverem cuidadas. A novidade desse estudo é focar na frequência sexual, sugerindo duas vezes por semana como marcador de saúde.
Então há mesmo uma relação entre sexo e depressão? Essa relação bidirecional é conhecida há décadas. Tratar a depressão frequentemente restaura a função sexual, pois ela depende da saúde mental. Pacientes deprimidos perdem interesse não só por sexo, mas por trabalho, relações sociais e até cuidados básicos. Hoje a depressão é uma das principais causas de incapacitação, inclusive sexual.
+ LEIA TAMBÉM: Letra de Médico: O total desinteresse por sexo: ele existe e tem de ser discutido
E na direção contrária, como isso acontece? Pode acontecer de ele começar a falhar e, pela falha, perder a autoestima. Imagine um homem com diabetes severa não tratada. Ele vai começar a falhar, uma, duas, três vezes. O que acontece? Ele pode se deprimir por esse problema sexual. A depressão, por outro lado, realimenta a disfunção sexual.
A alta frequência pode ser um problema? O que a gente considera sexo demais é aquela atividade que impede outras questões relevantes da vida. Não é uma problema fazer sexo todos os dias ou duas vezes por dia se isso não atrapalha outras atividades, mas quando ele te impede de dormir, de comer, de trabalhar, deixa de ser saudável e passa a ser compulsivo.
É possível falar em um número que valha para todos? Sexo não satisfatório não garante saúde. Posso fazer cinco vezes na semana, mas se todas me deixarem frustrada, não valeu. A frequência positiva é aquela em que a pessoa sai satisfeita. Cada um tem seu critério. Mas precisamos nos lembrar que existe um contingente da população que não precisa de sexo. Na última grande pesquisa do meu grupo, em 2016, vimos que 2,5% dos homens e 7,5% das mulheres são assexuais e vivem bem com isso. A libido é direcionada para outras partes da vida.
E isso pode variar com a idade? Coincidentemente com os números desse estudo, as nossas pesquisas encontraram que o brasileiro saudável faz sexo duas a três vezes por semana, mas isso pode mudar, sim. Os mais jovens, tendo oportunidade, fariam todos os dias. Já a população que está envelhecendo, tem uma frequência maior. O que encontramos é que na faixa dos 60 é uma relação por semana e na faixa dos 70 chega a uma vez a cada 10 ou 15 dias. E isso é o suficiente.
+ LEIA TAMBÉM: Três vezes por semana – essa é a frequência sexual do brasileiro
As redes sociais mudaram os hábitos dos jovens? Hoje eles têm o sexo virtual como alternativa. Pós-pandemia isso explodiu. Antes a demanda reprimida podia ser uma fonte de adoecimento mental, mas a opção virtual resolve isso para os jovens que não encontravam oportunidade. Por outro lado, eles têm iniciação sexual com uma parceria sexual mais tardiamente que as gerações anteriores porque há uma opção prática, acessível e barata, sem precisar se produzir ou seduzir alguém.
A pornografia, especialmente nessa idade, pode fazer mal? É muito complexo começar a vida sexual pela pornografia, especialmente se for muito hard. Um garoto de 10 ou 11 anos, sem maturidade, pode achar que aquilo é usual e que terá que dar conta daquele tipo de prática. Mas não podemos condenar toda pornografia, algumas até têm valor educativo, mostrando outras realidades para que a pessoa não fique numa bolha. Tudo depende do tipo de pornografia, por quem e como ela está sendo consumida.
Existe vício em pornografia? Sim. Isso acontece quando a pessoa não consegue se estimular sem uso de pornografia. Isso se torna difícil de administrar, especialmente para o parceiro que não entende. A pessoa se torna refém daquilo, deixando de ser positivo. Ela pode perder quem ama e falhar em criar vínculos reais.
E quais as principais dificuldades enfrentadas com base no gênero? As mulheres têm, em geral, mais necessidade de se sentirem bem fisicamente, com a estética em dia, para relaxar e ter vontade e prazer sexual. Muitas, ao engordar, por exemplo, perdem o interesse por não se sentirem confortáveis com o próprio corpo. Isso também tem acontecido com homens das gerações mais novas.
Que outras dificuldades eles enfrentam? Para os homens, o desafio ainda é, por incrível que pareça, precisarem se sentir aptos sempre que há oportunidade. Se não se julgam capazes de corresponder a expectativa, perdem a confiança e isso inibe sua frequência sexual.
+ LEIA TAMBÉM: Letra de Médico: Onde mora a vulnerabilidade masculina?
Outros gêneros e sexualidade tem desafios distintos? Entre homossexuais, a frequência flui melhor quando há clareza entre quem é passivo e ativo. A dificuldade surge quando há sobreposição de expectativas. Já na população trans, questões ligadas à transição – hormônios e procedimentos, por exemplo – impactam profundamente o humor. Depressão e ansiedade são muito mais prevalentes nessa população que nas pessoas cis, afetando diretamente a vida sexual.
Os fetiches podem ser saudáveis? O sexo consensual é aquele que nós consideramos como saudável. Então, desde que você e a sua parceria estejam de acordo com aquilo que está acontecendo, não há problema nenhum. O problema é quando a prática é realizada sem o consentimento ou com pessoas vulneráveis. Nesses casos, a pessoa precisa de tratamento. Fora isso, todo sexo em que ninguém sai prejudicado ou esteja em sofrimento, físico ou emocional, é considerado saudável.