O excesso de gordura é representado pela inventividade humana há mais de 38 000 anos, como é possível ver pela corpulenta Vênus de Willendorf, a escultura encontrada em regiões geladas da Europa em 1908. Por séculos, indicou opulência, fertilidade e moldou padrões de beleza, principalmente o de mulheres. Demorou até que a ciência depositasse os olhos sobre o fenômeno e, mesmo assim, quando isso começou a ser feito, a partir do século XIX, não se chegou muito além da constatação de que se tratava de um mero depósito de energia. E assim foi até que o alarme disparou. A escalada de mortes por doenças cardiovasculares, intimamente associadas à obesidade, e a explosão no total de obesos no mundo — 1 bilhão, segundo a Organização Mundial da Saúde — desencadearam um esforço internacional sem precedentes para aprofundar o conhecimento sobre o lipídio e desenhar estratégias mais eficazes para derrotar um dos maiores perigos à saúde pública e individual. A gordura, hoje se sabe, está também por trás de diversos tipos de câncer, inclusive o de mama, de enfermidades osteomusculares e mentais, como depressão e ansiedade. É uma bomba que precisa ser desarmada. Por isso, a ordem é tolerância zero.
Os cientistas entendem que, para a recomendação ser bem-sucedida, é preciso, em primeiro lugar, superar a velha máxima de que o acúmulo de gordura é solucionado comendo menos e gastando mais energia. É preciso mais do que isso. Graças ao salto nas pesquisas dos últimos anos, compreende-se que a obesidade é resultado de uma teia de fatores na qual sobressaem-se predisposição genética, ambiente familiar, condições econômicas, sociais e emocionais e um sistema metabólico que deve operar sob a mais fina harmonia.
O desafio está em vasculhar cada um desses aspectos procurando as formas de interferir para que o jogo vire definitivamente a nosso favor. Alguns dos caminhos eram até que conhecidos, mas ganharam outras dimensões. É o caso da prática de exercícios. Associada à alimentação saudável, ela compõe a base da cartilha do emagrecimento. Contudo, novíssimas evidências mostram que os benefícios ocorrem mesmo que os ponteiros da balança não se alterem. Em março, pesquisadores americanos e canadenses publicaram um estudo no periódico The Journal of Physiology apontando que, em obesos, doze semanas de treinamento de intensidade moderada ou de treinamento intervalado de alta intensidade — este último mais conhecido no Brasil — reduzem os processos inflamatórios e o tamanho das células adiposas, onde a gordura é armazenada. São dois impactos importantíssimos. O primeiro: a inflamação derivada da obesidade está na origem do diabetes, outra enorme ameaça à saúde, e da ocorrência do infarto, evento que mais mata no mundo. Portanto, quanto menos intensa, melhor. Em relação ao tamanho das células de gordura, há risco de extravasamento do conteúdo para a corrente sanguínea quando elas são volumosas e estão cheias. Se isso acontece, a gordura se aloja em órgãos como o coração e o fígado.
Outro mecanismo que emerge com força é a relação dos exercícios com a chamada gordura marrom. Descoberta em 1960, ela foi logo chamada de “órgão termogênico” por sua capacidade de gerar calor a partir da queima de outro tipo de gordura, a branca, justamente a que se deposita no corpo. Por quase cinquenta anos, acreditou-se que estivesse presente somente em bebês com a função de mantê-los aquecidos, uma vez que os pequenos não conseguem tremer e, portanto, esquentar-se a si próprios. Em 2009, contudo, veio a comprovação de que ela estava presente em três pontos: abaixo da clavícula, no pescoço e na coluna vertebral.
O nó estava em como ativá-la, transformando-a em instrumento para queima da gordura ruim. Expor-se a temperaturas amenas, entre 18 e 19 graus, é um jeito, mas algo um pouco mais complicado de fazer no dia a dia. É aqui que entram, novamente, os exercícios físicos. O recente mergulho nos processos envolvendo a gordura marrom trouxe a constatação de que a prática tem papel decisivo nessa ativação. Uma das formas pelas quais isso acontece é a produção, promovida pelos treinos, do hormônio irisina, capaz de acionar a entrada em ação da gordura do bem. Com investigações acontecendo em todo o mundo, surgem também mais alternativas potencialmente interessantes. Entre elas, a inosina, molécula que, em cobaias, conseguiu a proeza de converter a gordura branca em marrom. A mais nova investigação sobre seu poder foi feita na Universidade de Bonn, na Alemanha, conduzida por Alexander Pfeifer. “Precisamos desesperadamente de medicamentos para normalizar o balanço energético em pacientes obesos”, afirma o cientista.
Como toda empreitada científica, que sempre traz no bojo descobertas tão fabulosas quanto inusitadas, o esforço feito nesse momento contra a gordura desvela aspectos surpreendentes associando o peso a fatores até então improváveis. Seria difícil imaginar, por exemplo, que quilos em excesso estariam também vinculados ao ritmo do relógio biológico e à qualidade da microbiota intestinal, o conjunto de microrganismos que habitam o sistema digestivo. Mas é exatamente isso o que está sendo demonstrado.
O relógio biológico, ou ritmo circadiano, é o ciclo que regula as funções do organismo em um período de 24 horas. Ele é essencial para diversas operações, mas só recentemente soube-se de maneira mais detalhada de sua importância para o controle de peso. “O relógio biológico é vital para orquestrar o metabolismo”, diz Maria Edna de Melo, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Em dois estudos publicados neste ano, cientistas da Weill Cornell Medicine, nos Estados Unidos, sugeriram que qualquer perturbação nesse ritmo aumenta o crescimento de células que armazenam gordura. O resultado se espelha nos obtidos em junho do ano passado por um grupo da Universidade do Texas, em Houston. Na ocasião, os pesquisadores verificaram que a combinação de distúrbios no relógio biológico e o consumo de alimentos calóricos é catastrófica. “O relógio de 24 horas que regula nosso corpo protege nossa gordura saudável e precisamos mantê-lo equilibrado ao máximo”, afirma Aleix Ribas-Latre, autor do estudo. As pesquisas sobre a relação entre a gordura e as bactérias do trato intestinal são mais incipientes. Contudo, trazem também boas ideias para o enfrentamento mais abrangente da questão. Uma das coisas que já se sabe é que esse “caldo” de microrganismos no trato digestivo pode ajudar ou atrapalhar na perda de peso dependendo de sua composição. Vem daí a necessidade de manter essa população em equilíbrio por meio de boa alimentação — iogurtes e kefir são boas opções. Assim, pouco a pouco, sobe a chance de vitória da estratégia de concessão nenhuma à obesidade.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813