Sarampo: perigoso retrocesso
Não é exagero atribuir também o problema a um fenômeno deflagrado nos EUA, que alcançou os europeus e felizmente ainda é tímido aqui: o movimento antivacina
É constrangedor, para dizer o mínimo, ter de admitir a volta do sarampo — doença que se supunha controlada não só no Brasil como no resto do mundo. Por aqui, os dados são vergonhosos: duas dezenas de mortes e quase 6 000 casos da enfermidade foram registrados ao longo de 2019, um aumento de 18% em relação a 2018. E, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de ocorrências no exterior quase triplicou de 2018 para cá, especialmente na Europa e nos Estados Unidos (e soa ainda mais espantoso tamanho retrocesso em países ricos). Transmitido por secreções, como a saliva, o sarampo tem alto poder contagioso. Seu vírus reduz a eficácia do sistema imunológico e deixa o organismo vulnerável a outras infecções. Quando a doença não é tratada rapidamente, cerca de 20% dos casos resultam em problemas graves — como pneumonia e danos neurológicos. Os efeitos são piores em crianças com menos de 5 anos, em pessoas desnutridas e, claro, naquelas com as defesas já fragilizadas.
A rigor, ninguém deveria estar falando de sarampo em pleno século XXI, e por um motivo simples: a existência de uma vacina eficaz. Criada nos anos 60, ela compõe a chamada tríplice viral, que protege ainda contra rubéola e caxumba. Uma única dose garante imunidade, ou seja, a produção de anticorpos, em 95% das pessoas. E, no entanto, deu-se um irresponsável recuo na cobertura vacinal. Isso se deveu, em parte, a um fator, digamos, psicológico — considerado um mal do passado, o sarampo deixou de ser, para muitos, objeto de cuidados. Mas não é exagero atribuir também o problema a um fenômeno deflagrado nos EUA, que alcançou os europeus e felizmente ainda é tímido aqui: o movimento antivacina, baseado na tese do gastroenterologista inglês Andrew Wakefield, que, em 1998, associou a vacina tríplice ao risco de autismo. Ele foi desmascarado, porém seus argumentos seguem contaminando mentes.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667