Depois de dois anos do sobe e desce atordoante nos números de casos e de mortes por Covid-19, o Brasil chegou ao caminho da estabilidade no controle da crise sanitária. Na terça-feira 22, a média móvel diária de novas infecções completou 45 dias sem aumento, ficando na casa dos 35 700, total 23% mais baixo do que o aferido duas semanas antes. O índice médio de óbitos, de 301, vai na mesma tendência, sendo 34% menor do que o contabilizado no dia 25 de fevereiro. O alívio da pressão feita pelo coronavírus nos serviços de saúde permite que, aos poucos, o país levante as restrições impostas para seu controle, culminando na suspensão ou flexibilização do uso de máscara. Em oito capitais, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro, o uso é facultativo em ambientes fechados e abertos. Em nove, Belo Horizonte e Boa Vista entre elas, são exigidas somente em locais fechados. No restante, o emprego do equipamento permanece compulsório. A notícia entusiasma. Ela indica que a ciência está vencendo o vírus, ancorada na proteção oferecida pelas vacinas.
Do ponto de vista de boa parte da comunidade científica, o momento da pandemia permite que voltemos a viver no mundo com o rosto descoberto. É fato que a crise sanitária não acabou. Agora mesmo se observa nova subida de casos nos Estados Unidos e ao menos em dezoito dos 53 países europeus. Desta vez, a responsável pelo crescimento é a BA.2, subvariante da ômicron que se espalha desde fevereiro. No entanto, os cientistas a favor da retirada de restrições argumentam que as oscilações fazem parte da trajetória que a crise sanitária cumprirá até chegar à etapa de endemia, quando o microrganismo causará doenças, mas não provocará eclosões graves. Além disso, instituições como o Centro de Controle de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, entendem que daqui para a frente ações de controle devem ser pautadas pelos índices de hospitalização e não mais por número de infecções. A explicação é que a evolução natural do vírus sugere que ele se tornará mais transmissível, porém menos letal. Por isso, o que deve passar a contar é somente quanto ele gera de doença grave. O processo, aliás, foi visto com a ômicron, que fez explodir os casos no mundo entre novembro de 2021 e fevereiro deste ano, porém sem produzir grande impacto em internações. Baseado nesse pressuposto, o órgão americano foi um dos primeiros a apoiar a queda das máscaras. Somado a isso, há o avanço da cobertura vacinal. Sem dúvida, ela deveria ser maior, como indica a Organização Mundial da Saúde. Há um ano, a entidade previa que 70% da população mundial estaria protegida até junho de 2022. Hoje, o índice está em 58%. Mas em nações como o Brasil, onde as taxas de imunização são bastante satisfatórias, a retirada da obrigatoriedade do uso de máscara seria aceitável. “Embora ela tenha sido importantíssima para nos proteger em momentos de transmissão exacerbada do coronavírus, neste momento seu uso não se justifica mais dada a cobertura vacinal no país”, afirma o infectologista Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia. Contudo, não se trata de uma posição consensual. Há centenas de especialistas que consideram a medida precipitada. Entre eles, figura o infectologista Anthony Fauci, conselheiro do governo americano e um dos mais respeitados do planeta. Fauci alega que o número de casos ainda é alto e que o coronavírus já mostrou que pode surpreender depois de períodos de relaxamento, a exemplo do que ocorreu em meados do ano passado, quando o progresso da imunização e a queda de infecções fizeram muitos países suspender restrições para depois serem obrigados a voltar atrás após a eclosão da ômicron.
Por baixo do debate, repousa a complexidade do assunto. A discussão sobre a pertinência de aposentar ou de manter as máscaras atravessa fatores variados e, por isso mesmo, não pode ser reduzida a vieses políticos ou cair na vala do radicalismo. Não se pode dividir os indivíduos entre os que não querem mais utilizar o acessório e que, dessa forma, seriam negacionistas, e os que continuam a adotá-lo, sendo, portanto, igualmente partidários desta ou daquela ideologia. Em primeiro lugar, máscaras não são objetos políticos. São ferramentas de proteção à saúde. Depois, deve-se ficar claro que as determinações sobre o uso do acessório variam segundo a localidade, e a orientação precisa ser obedecida. A imposição ainda vale para estabelecimentos de saúde, transporte público, pontos de acesso controlado nos aeroportos, como as salas de embarque, e aeronaves — nesse caso, a exigência se deve ao fato de serem ambientes nos quais se concentram pessoas de origens, perfis epidemiológicos e proteção vacinal distintos, além de não terem espaço para distanciamento físico. Ainda há as instituições com autonomia para decidir a própria conduta, como as universidades estaduais de São Paulo. Embora o uso tenha deixado de ser obrigatório em todo o estado, a Universidade de São Paulo, a Universidade Estadual de Campinas e a Universidade Estadual Paulista mantiveram a imposição dentro das salas de aula. Observadas as normas onde elas existem, todos têm a liberdade de escolher o que fazer. Muita gente continua utilizando o acessório por medo de contaminação ou, no caso de adolescentes, por dificuldade em expor novamente o rosto. “Eles estão bem ansiosos com isso”, diz a psiquiatra Miriam Gorender, da Universidade Federal da Bahia. Grande parte das escolas e das empresas também optou por prosseguir com a obrigatoriedade. Nesses casos, mesmo contrariados, os indivíduos precisam seguir a norma em respeito à cidadania. O momento é de transição, de insegura volta à vida como ela era, e é certo que voltaremos.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782