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Prazer, Ana Michelle

Quarenta anos de vida, 12 anos com câncer e um mês da morte da brasileira que revolucionou a relação com a finitude.

Por Juliana Dantas e Tom Almeida
21 fev 2023, 09h00

No início do mês, uma cuidadosa e elogiada reportagem especial de VEJA – Um Suave Adeus –, em torno dos cuidados paliativos destinados a pacientes terminais, teve imensa repercussão nas redes sociais. Em um dos quadros, dedicado à jornalista e escritora Ana Michelle Soares, foi usada uma frase com uma expressão inadequada, embora de modo inadvertido – “abatida pelo câncer” – para se referir à morte de AnaMi, como ela era conhecida. A partir do contato com pessoas próximas a AnaMi que cuidam do relacionamento da sociedade com a morte, o luto e os cuidados paliativos, VEJA alterou o texto em sua versão digital. Em vez de “… abatida pelo câncer um mês depois”, o que se lê agora é “faleceu em decorrência de um câncer um mês depois”. O artigo a seguir é um dos bons frutos das conversas da redação de VEJA com dois comunicadores que se dedicam a um novo olhar diante de tema tão complexo.

“Para morrer, basta estar vivo”, versa o ditado popular. A jornalista e escritora Ana Michelle Soares colocou esse pensamento em outra perspectiva. Dizia: “a finitude é crônica”. Em poucas palavras, um fato que também é provocação. Não podemos nos curar da finitude e nada nem ninguém até hoje foi capaz de reverter essa nossa condição humana. AnaMi morreu há exato um mês, aos 40 anos, no dia 21 de janeiro de 2023.

“A morte é a única certeza que temos na vida”; outro ditado. Temos essas frases prontas, que costumam encerrar conversas, colocar um ponto final no desconforto. E, apesar de serem verdade, passamos a vida inteira fingindo que não são. A morte é abstrata, é mau agouro, um assunto a ser evitado, bate na madeira. Um, dois, três.

Ana Michelle Soares se contrapunha a um imaginário: o de que todos vamos morrer velhinhos, numa cama quentinha, confortavelmente e rodeados de amores. Se for dormindo, ainda melhor. Algumas pessoas não pensam nem isso. Outras, acreditam que a ciência dará um jeito de inventar a imortalidade nas próximas décadas. Sabendo que não ia envelhecer, AnaMi decidiu viver. E logo.

Para Ana Michelle Soares, o fim se apresentou com uma adaga pontiaguda, aos 28 anos. Câncer de mama. Depois, metástase. No auge da juventude, cheia de planos, desejos e futuros.

Ana Michelle tomou um baque, se viu obrigada a recalcular a rota. Com todas as dores, tratamentos, agulhas e quimioterapias, se viu com urgência de viver. Se colocava de igual para igual diante dos médicos, ciente de que a última palavra sobre a própria vida era dela. Fazia o mesmo com a doença e com o tempo. Foi para Paris, lançou os livros Enquanto eu respirar, Vida inteira e deixou o terceiro pronto antes de partir (todos pela Editora Sextante). Deu aulas, fez palestras, até um TED. Foi a primeira pessoa não-médica a discursar para integrantes da Academia Nacional de Medicina. Foi a shows sonhados, conheceu gente incrível, mandou pintar de lavanda uma casinha em São Francisco Xavier, no interior de São Paulo, para onde fugia para tomar banho de natureza.

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A diferença entre ela e a maioria de nós, é que a finitude se impôs de maneira concreta. A metástase avisou: ali, não haveria uma “história de superação”. Aquelas que nós, comunicadores, temos tanto vício em contar. Sobre quem deu a volta por cima, sobre quem teve fé e venceu, sobre quem não esmoreceu e não reclamou. Será que são só essas as histórias que merecem ser contadas? Será que faz sentido contar as histórias dessa maneira?

O câncer de Ana Michelle não teria cura; mas Ana Michelle, sim. Traçou, de verdade, uma jornada de cura e de autoconhecimento. Nos fez questionar a sério se temos mais dias na vida ou mais vida nos dias. O caminho dela foi o da segunda opção. Tinha a consciência real da finitude e fazia cada minuto ser valioso. Não era um papo de autoajuda barata: era uma vivência pé no chão, de quem escolheu aprender a lidar com o tempo. Era vida, vida real, vida demais. Chegava a nos ofuscar os olhos. Além da morte, ela tinha outra certeza: “A cura transcende a biologia”. E ela transcendeu.

Ana Michelle não era uma coitadinha, não era frágil, não era alguém que atraía olhares condescendentes. Ana Michelle era revolucionária. Foi, e ainda é, uma das principais vozes que estão mudando as perspectivas de comportamento em relação ao câncer, aos médicos, aos hospitais. Ela virou a mesa, ela foi protagonista. Seus valores e desejos eram imperativos, como deveriam ser os de qualquer pessoa que está na condição de paciente. E mais: convocou milhares de pacientes a ocuparem esse espaço com ela. Ela não andava só.

AnaMi também foi uma das mais importantes figuras para a difusão dos cuidados paliativos no Brasil. Furou a bolha. “Só se vive uma vez”, vem o senso comum novamente. Mas ela mostrou que só se morre uma vez; viver, é todo dia, toda hora, todos os minutos. Não era uma ode vazia ao carpe diem. Era uma vivência cheia de significados.

Pode ser difícil imaginar alguém sendo revolucionária diante de uma fragilidade de saúde. Refutava os estereótipos de guerreira e ficava maluca quando ouvia que “fulano perdeu a luta contra o câncer”, como se fosse questão de merecimento ou garra.

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Pessoas com câncer não são um grupo à margem da sociedade – elas estão entre nós e podemos virar uma delas a qualquer momento. Talvez o nosso medo do adoecimento e da finitude seja ainda maior justamente por como olhamos e tratamos pessoas com um diagnóstico grave.

Pessoas com câncer estão por aí, não morrendo, mas vivendo. Vivendo cada vez mais e melhor. E é nosso papel não só como comunicador, mas como sociedade, suavizar a tinta possível, sem romantizar, mas sem fazer terrorismo.

Diante de uma doença grave, a resposta está nos cuidados paliativos. Não só em casos de enfermidades terminais, embora também. Segundo a Organização Mundial da Saúde, os cuidados paliativos são uma abordagem multidisciplinar que deve ser ofertada no momento do diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida. Ou seja: não são para morrer, mas para viver mais e melhor.

Os cuidados paliativos merecem ser bem explicados e compreendidos em nome de um bem maior, um bem comum, um bem social, um direito humano. É uma prática que valoriza todos os aspectos de um ser humano por inteiro, e não apenas uma doença. Se a enfermidade não tiver cura, o ser humano continua merecendo cuidado.

Por isso, a equipe multidisciplinar envolve médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, psiquiatras (que também são médicos, claro), assistentes sociais, assistentes espirituais, fonoaudiólogos, nutricionistas, entre outros. Esse é o reconhecimento de que todo indivíduo tem múltiplas dimensões e a dor que importa não é apenas a física, mas a existencial, social, psicológica, financeira, espiritual e tudo o mais que estiver incomodando.

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Como diz o médico paliativista Samir Salman, idealizador do primeiro hospital a se dedicar integralmente aos cuidados paliativos no Brasil, o Hospital Premier, “o paliativista deve ser uma página em branco.” – no bom sentido. Deve se despir de suas crenças e valores para entrar em contato real com os valores de quem está sendo cuidado. Só quando somos vistos por inteiro é que somos, de fato, bem cuidados. Não somos uma doença, nem um diagnóstico. Somos seres realizantes, com preferências e temores, amores e dissabores, com uma cor preferida, um prato preferido, uma religião ou nenhuma. Tudo isso importa.

Voltando ao fato de que, sim, vamos todos morrer, precisamos considerar alguns fatores. Certamente vamos perder alguém importante e envelhecer. Caso contrário, teremos morrido antes. Então, mais do que o dado concreto de que morreremos e perdemos pessoas, é urgente que a gente pense o “como” dessa coisa toda. Pesquisas revelam que 88% da população morrerão em decorrência de um adoecimento. Apenas o restante terá uma partida súbita.

Do continente africano vem o provérbio de que é necessária uma aldeia inteira para cuidar de uma criança. E, diante dos dados, fica evidente que devemos prorrogar a atuação dessa aldeia para o envelhecimento, para o adoecimento e para a terminalidade.

No Brasil, morremos mal. Sempre figuramos longe das melhores posições nos rankings de qualidade de morte. E isso interessa literalmente a todos nós. Para que uma mudança de mentalidade aconteça, realmente precisamos ter essa conversa dentro de casa e em sociedade. Precisamos de políticas públicas, precisamos de boa comunicação da imprensa, precisamos que pacientes, familiares e profissionais de saúde tenham mais consciência de seus papéis.

Os cuidados paliativos não são um dever, mas um direito. Um direito que, contudo, repelimos. Achamos que é desistência, que é gambiarra, que é necessário largar o tratamento curativo e se entregar. Não: cuidados paliativos são insistência em qualidade de vida. Com qualidade de vida, há mais condições físicas e emocionais de encarar os desafios que se desenham após o diagnóstico de uma doença grave. Não é uma questão de “ou isto ou aquilo”, é uma soma de esforços. Aceitar os cuidados paliativos não é abandonar qualquer chance de cura, pelo contrário.

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AnaMi mostrou menos em teoria e mais na prática que valia a pena olhar nos olhos da morte para, justamente, saber calibrar que tipo de vida queria ter. Enrolou-se na bandeira esvoaçante do tempo e deixou que o vento soprasse. Os cuidados paliativos foram fundamentais nesse processo, como escolha e alívio, não como um fardo.

Se a quantidade de serviços de cuidados paliativos no Brasil já é insuficiente, quanto mais camadas da sociedade compreenderem que são desejáveis, mais aceleraremos o processo de expansão da prática.

A história de AnaMi merece ser contada. A história dos cuidados paliativos merece ser contada. Essa comunicação é fundamental. A linguagem importa. Caminhar para frente se impõe. O câncer não ganha de ninguém, não abate ninguém, não é um castigo para quem não tem fé. Ele só é. Desafiador e dolorido mas, recorrendo à Clarice Lispector, a gente “ deve viver apesar de.”

Quando pessoas enlutadas por Ana Michelle Soares leram que ela foi abatida pelo câncer, novas feridas foram abertas. Outras, que já eram profundas, foram ainda mais cavadas. Amigos, parentes, admiradores e o núcleo familiar mais próximo ficaram dilacerados. Naquela data, não havia nem duas semanas da partida. “No primeiro momento senti uma ira muito grande.”, diz Alvenir Sousa Soares, mãe de AnaMi. “E, depois, uma profunda tristeza pela forma diminuta pela qual ela foi tratada.”, desabafa. “[AnaMi era] maravilhosa, forte e corajosa.”, completa.

Sabemos que o luto não passa, apenas vai mudando de contornos. Mas, naquele momento, estava à flor da pele, em carne viva.

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O luto é um processo natural, humano e individual. É saudável e desejável senti-lo. Porém, acrescentar novas camadas de dor a quem já está com uma dor principal pode atrapalhar – e muito – esse processo. Luto é saúde mental. E, como sabemos, é cada vez mais urgente colocarmos os pingos nos is nesse assunto. Questão de saúde pública.

Hoje, AnaMi é um rastro de luz. Não há estereótipo de lenços, maquiagem e ações de Outubro Rosa em que AnaMi caiba. Seu corpo biológico não precisa estar vivo para que continue inspirando e ensinando. Os livros estão por aí, as entrevistas estão nos servidores que abrigam vídeos e podcasts online, o cheiro de lavanda segue suspenso no ar. A página @paliativas, inclusive, virou um espaço memorial. Todos que quiserem continuar entrando em contato com lufadas de frescor e de vida, podem.

*Juliana Dantas é jornalista e apresentadora do Finitude Podcast (Instagram: @finitudepodcast)

*Tom Almeida é comunicador e fundador do Movimento inFINITO (Instagram: @infinito.etc)

Saiba Mais:

Cartilha Sobre Cuidados Paliativos. A revolucionária forma de cuidar

Cartilha para imprensa. Um guia para falar sobre questões de cuidados paliativos, morte e luto.

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