Pioneiro estudo brasileiro usa o zika vírus na missão de atacar o câncer
Após uma bem-sucedida fase de testes com animais, uma startup criada dentro da USP anuncia que iniciará os estudos clínicos com pacientes
Talvez a melhor analogia para explicar como agem os vírus seja a do famoso cavalo de Troia. Reza a lenda que soldados gregos se esconderam dentro do arcabouço de madeira presenteado aos troianos. Uma vez dentro das muralhas, os invasores dominaram os adversários e ganharam a guerra. A exemplo deles, vírus só conseguem sobreviver e se multiplicar ao penetrar uma célula. Foi de olho nessa habilidade que os cientistas tiveram uma ideia: por que não tentar utilizar os micróbios para contra-atacar células doentes dentro do organismo? Foi assim que surgiu a proposta de recorrer ao seu potencial invasor e destrutivo para combater um dos maiores tormentos da humanidade, o câncer. E vem do Brasil uma das grandes promessas na área: empregar o zika vírus — aquele transmitido pelo mosquito da dengue que, ao infectar gestantes, pode provocar microcefalia em bebês — na missão de exterminar tumores cerebrais. Após uma bem-sucedida fase de testes com animais, uma startup criada dentro do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco da USP anuncia que iniciará os estudos clínicos com pacientes — algo inédito no planeta.
Devastadores em epidemias, os vírus ganharam atenção dentro da oncologia ainda no século XIX. Médicos notaram que, em pessoas com leucemia, ocorria uma redução na contagem de células tumorais após infecções virais. Entre os anos 1950 e 1980, até houve interesse sobre os denominados vírus oncolíticos — os capazes de lutar com o câncer —, mas faltavam ferramentas para impedir que, durante o ataque, não houvesse, como efeito colateral, o adoecimento de pacientes já fragilizados. Tudo mudou com a engenharia genética. Avanços nos últimos vinte anos pavimentam esperanças de destruir, de forma mais precisa e segura, as células malignas.
Esse é o objetivo do trabalho brasileiro que se vale do zika vírus modificado em laboratório. A linha de pesquisa nasceu de uma tragédia. Entre 2015 e 2017, a disseminação do patógeno desencadeou casos de microcefalia que atingiram ao menos 4 595 bebês, mobilizando as autoridades e a comunidade científica. Em 2018, pesquisadores da USP observaram uma predileção desse vírus por células-tronco neurais na fase fetal. Depois, estabeleceram uma conexão com o fato de que tumores cerebrais eram agressivos por terem perfil parecido ao dessas células. Decidiram, então, verificar se o zika poderia bombardear o câncer e, a partir daí, visando à segurança do processo, conseguiram criar um modelo sintético do microrganismo. “Ele é geneticamente modificado e passa a ter um gene chamado de ‘sequência suicida’. Se entrar em uma célula saudável, ocorre sua degradação na hora”, diz Carolini Kaid, presidente e diretora científica da Vyro Biotherapeutics, startup que nasceu para dar fôlego à pesquisa. “Se a célula for cancerosa, ele a destrói.”
Após passar pelas etapas pré-clínicas, o estudo com humanos, com número pequeno de voluntários, deve começar em junho, após receber aval da Anvisa. O alvo será o glioblastoma recorrente, doença maligna no sistema nervoso central. Tumores do tipo afetam cerca de 300 000 pessoas no mundo e são difíceis de tratar. Quem acompanha os pacientes conhece o desafio e tem boas expectativas com o novo método. “É uma doença com terapias limitadas. Na cirurgia, não dá para tirar todas as células tumorais, porque estão em um tecido nobre, o cérebro”, afirma Thiago Bueno, oncologista do A.C. Camargo Cancer Center.
A proposta entusiasma por já ter se mostrado eficaz não só para debelar os tumores em si, mas também para ativar o sistema imune em outras abordagens autorizadas no exterior. Em 2021, o Japão liberou um tratamento para o glioblastoma com um vírus do herpes modificado — e o mesmo patógeno protagoniza uma terapia contra melanoma nos EUA e na Europa. Na China, adenovírus transformados geneticamente são colocados para enfrentar tumores de cabeça e pescoço. Uma das vantagens seria justamente a precisão do golpe — químio e radioterapia, por exemplo, tendem a atingir também células saudáveis. “Com os vírus oncolíticos, há potencialmente menos reações adversas”, diz a pesquisadora Thea van de Mortel, da Universidade Griffith, na Austrália. Velha estratégia, novíssimos usos.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881