Pela primeira vez, número de crianças com obesidade supera o de jovens com desnutrição
Trata-se de um fenômeno inédito no mundo: enquanto o índice de desnutrição entre os mais novos caiu de 2000 a 2025, o de obesidade quase triplicou
Depois de anos sucessivos de avanços médicos e sanitários, que culminaram no aumento da expectativa de vida da população, a safra atual de crianças e adolescentes poderá ser a primeira a ter um destino menos longevo. E o principal motivo é a obesidade, que começa a se manifestar cada vez mais cedo. É o que preveem, de forma preocupante, especialistas em saúde pública. Se durante séculos o pêndulo se virava para o drama da desnutrição, agora ele oscila de maneira tempestuosa para o outro lado, o do excesso de peso, como aponta um levantamento recém-concluído pelo Unicef. Trata-se de um fenômeno inédito no mundo: enquanto o índice de desnutrição entre os mais novos caiu de 13% para 9,2% de 2000 a 2025, o de obesidade quase triplicou no período, saltando de 3% para 9,4%. É inversão histórica que se dissemina entre países ricos e pobres e põe o planeta em estado de alerta para diversas consequências, inclusive econômicas. O Brasil não foge à regra: por aqui, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 7 milhões de crianças e jovens de até 19 anos receberam diagnóstico de obesidade — apenas em 2024.
O planeta engorda em ritmo assustador — e de forma precoce. “Costumo dizer que é a doença da modernidade”, afirma o endocrinologista Bruno Geloneze, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A combinação entre a oferta de uma alimentação calórica e ultraprocessada e uma rotina sedentária tem sido terreno fértil para os pequenos engordarem. A biologia ajuda a explicar: nosso corpo, programado por milênios para sobreviver à escassez, hoje vive cercado de calorias baratas, altamente palatáveis e embaladas em pacotes coloridos — uma combinação que fisga especialmente os mais jovens. Estudos indicam que esse padrão alimentar favorece o desequilíbrio metabólico. “São produtos que enganam a área do cérebro responsável pela saciedade”, diz Geloneze. Come-se mais e gasta-se menos energia. O resultado se vê na balança ou na circunferência medida com fita métrica — que acusa o tipo mais perigoso de gordura corporal.
Se essa dinâmica antes ocorria apenas em nações desenvolvidas, como Estados Unidos e Reino Unido, agora o modelo foi exportado e atinge, de forma acelerada, regiões como a América Latina e a Ásia. Mas reduzir a obesidade infantil apenas à equação de comer demais e exercitar-se de menos simplifica uma complexa engrenagem fisiológica. Já existem evidências de que o excesso de peso pode começar a ser “programado” ainda na gravidez. Mães com obesidade ou diabetes gestacional tendem a dar à luz crianças com maior risco de engordar no futuro — uma alteração demarcada geneticamente. Além disso, a ciência tem provas de que o parto por cesárea, a falta de aleitamento materno e o uso desmedido de antibióticos na infância influenciam mecanismos que, em última instância, desregulam o balanço energético. Mais recentemente, outro fator sob holofote são os chamados disruptores endócrinos, substâncias presentes em embalagens plásticas, que chegam a interferir nos hormônios e contribuir para o acúmulo de gordura. “A obesidade não é apenas uma questão de escolhas pessoais. O buraco é mais embaixo”, diz Geloneze, da Unicamp.
Um dos desafios que giram em torno do excesso de peso na infância é a própria percepção social do problema. A miopia começa em casa. Uma pesquisa nacional indica que 62% dos pais de crianças com sobrepeso acreditam que elas estão na faixa adequada. Em muitas escolas, as cantinas pendem para uma miscelânea de ultraprocessados. E nem dentro do sistema de saúde há um número suficiente de profissionais capacitados para lidar com a condição. “A ideia de que tudo se resume a um descuido ou à ausência de força de vontade ainda é muito viva”, diz Luiz Cláudio Castro, presidente do Departamento de Endocrinologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
Mudar essa visão e reestruturar um amplo cenário é importante para que a nova geração não perca qualidade e expectativa de vida. Isso porque crianças com obesidade têm mais chances de se tornarem adultos acima do peso e uma propensão muito maior a desenvolver uma porção de doenças crônicas, que vão de diabetes e hipertensão a artrose e alguns tipos de câncer. Há também as repercussões psicológicas: baixa autoestima, bullying, isolamento, ansiedade e depressão. Um drama pessoal, mas também coletivo: a OMS estima que, até 2030, os custos globais associados ao excesso de peso podem atingir trilhões de dólares por ano — se continuarmos no ritmo atual, a conta chegará a 18 trilhões de dólares até 2060.
O Brasil até tenta segurar a maré com iniciativas que são referências internacionais para o cuidado infantil, como o programa de incentivo à amamentação e o guia alimentar adaptado aos pequenos, além do mais recente programa, Proteja, que reúne ações na atenção primária voltadas à prevenção da obesidade. Mas o desafio é enorme porque as crianças — aqui ou na China, por exemplo — hoje vivem no que os experts chamam de ambiente “obesogênico”, propício a um superávit calórico. “Na prática, temos ações isoladas, mas dificilmente se altera um problema estrutural”, afirma o nutricionista Mauro Proença, ligado ao Instituto Questão de Ciência. “Se a família mora numa região com escassez de alimentos saudáveis e abundância de ultraprocessados, mesmo que saiba o que é melhor para comer, terá grandes chances de optar pelo que não é o ideal.”
Um raciocínio semelhante se aplica à carência de parques e áreas de lazer ou mesmo de ruas seguras em inúmeros municípios, hoje considerada uma barreira velada à prática de atividade física. A onipresença das telas de smartphones e tablets, no recreio escolar ou dentro de casa, também suscita preocupação: as crianças ficam horas sentadas jogando games, navegando pelo TikTok ou assistindo ao YouTube — e ponto para o sedentarismo. Outro fator determinante, presente tanto em escala global quanto nos limites de uma cidade, é a desigualdade social. Enquanto a desnutrição ainda afeta muitas famílias, o excesso de peso surge como mais um desafio, especialmente entre as populações mais vulneráveis.
No fundo, a decisão do que se leva à mesa do lar não se baseia somente em preferências ou mesmo no salário. “Ela é influenciada pelo próprio sistema alimentar e por decisões econômicas”, diz a endocrinologista Maria Edna de Melo, coordenadora de advocacy da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. Na lógica atual, a comida nutritiva — inclusive a cesta de frutas e hortaliças — é também a mais cara. Seria preciso, portanto, rever uma série de subsídios e tributações a fim de levar em conta seu impacto na saúde da nova geração.
Nesta altura do debate, com a chegada dos novos medicamentos para perda de peso, representados pelas canetas de aplicação semanal, como Wegovy e Mounjaro, pode-se imaginar que a saída para o problema na infância também resida em remédios. A discussão, porém, é cheia de nuances e poréns. Fármacos como a liraglutida (de uso diário) e a semaglutida (semanal) já foram testados em crianças e adolescentes e demonstraram reduções moderadas de peso. Por ora, são indicados apenas após os 12 anos de idade. “Eles ajudam a controlar o apetite, servindo como suporte a um plano de reeducação alimentar, mas não são uma solução mágica”, ressalta Geloneze. Até porque o abandono do tratamento pode acarretar o retorno dos quilos perdidos. De qualquer forma, o acesso no Brasil é outro obstáculo. São medicações caras para boa parte da população e não disponíveis na rede pública — aliás, profissionais criticam a falta de opções medicamentosas para tratar a obesidade no SUS, sobretudo entre os pacientes adultos.
A verdade é que a obesidade infantil se tornou uma bola de neve para os sistemas de saúde. “Se não nos mobilizarmos hoje, a conta não fechará e teremos um problema insustentável lá na frente”, afirma o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto. Uma condição dessa magnitude e complexidade exige, assim, um enfrentamento que permeie diversas frentes: educação alimentar, planejamento urbano, políticas públicas, sistema agrícola, questões tributárias… Contudo, é consenso que as famílias também podem buscar fazer sua parte e adotar pequenas medidas no dia a dia, com efeitos reais na balança — e na saúde. Valorizar refeições caseiras, resgatar o consagrado arroz e feijão e depender menos de produtos industrializados prontos são uma unanimidade entre os especialistas. Assim como estimular atividades e brincadeiras que envolvam movimento — de preferência, ao ar livre. E os pais, claro, precisam dar o exemplo. Afinal, o que está em jogo é o futuro de toda uma geração.
Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2025, edição nº 2969

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