Se em 2020 o mundo parou, em 2021 caminhou aos solavancos de um infernal sobe e desce de casos e terminou assombrado pela variante ômicron, em 2022 finalmente começaremos a respirar. É certo que ainda não nos primeiros meses, quando a nova cepa, altamente transmissível, continuará por trás da explosão de novos casos em velocidade nunca vista durante a pandemia. Identificada pela primeira vez em novembro na África do Sul e em Botsuana, a ômicron já está presente em 110 dos 193 países. Contudo, embora seja bem mais transmissível do que as demais variantes de preocupação (alfa, gama, beta e delta), a ômicron vai passar. A história na África do Sul mostra isso. Depois do crescimento alucinante de infecções, o país anunciou em dezembro do ano passado o fim do pico de transmissão. E assim será sucessivamente nas outras nações graças à evolução natural das pandemias, que terminam, e aos recursos criados pela medicina nos últimos 24 meses. Há meios de monitorar o vírus e de detectá-lo, medicamentos de ação comprovada e vacinas que evitam com eficiência a progressão da Covid-19 para etapas graves. Como sintetizou o infectologista americano Anthony Fauci, conselheiro do governo dos Estados Unidos e um dos poucos no mundo com experiência no enfrentamento de crises sanitárias graves, “agora temos tudo”.
Uma das principais ferramentas são, sem dúvida alguma, as vacinas. Atualmente, há dez imunizantes sendo aplicados em regime de liberação emergencial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2021, eles foram responsáveis pela espetacular derrubada nos índices de casos graves em países com boa cobertura vacinal. No Brasil, onde quase 70% da população está completamente vacinada, a queda de casos e mortes foi impressionante. Na segunda-feira 3, a média móvel de óbitos foi de 96, mantendo-se abaixo de 100 pelo quarto dia consecutivo, algo que não acontecia desde abril de 2020. Embora os negacionistas não entendam, trata-se de uma equação matemática. Tais índices jamais seriam atingidos sem os imunizantes.
Os próximos meses, felizmente, devem ser marcados pelo lançamento de mais opções. A OMS relaciona 331 candidatas à vacina, das quais 137 estão em fase clínica (testes feitos já em seres humanos). Novas levas apresentarão uma ação mais abrangente sobre o vírus, ao contrário do que fazem as vacinas disponíveis. Atualmente, o principal foco dos imunizantes é a spike, a proteína que o vírus usa para invadir a célula. Mas, quando alterações genéticas expressivas ocorrem ali, o risco de o coronavírus conseguir driblar o efeito da vacina aumenta. A variante ômicron, por exemplo, apresenta 32 mutações só na spike, o que ajuda a explicar por que somente duas doses dos imunizantes não são suficientes para assegurar a proteção. Encontrar alvos não suscetíveis às mudanças no material genético do microrganismo tornou-se, portanto, o desafio daqui para a frente.
Na Inglaterra, cientistas da Universidade de Cambridge iniciaram os testes clínicos com um imunizante que se enquadra no conceito. A DIOS-CoVax tem como foco de ação estruturas do SARS-CoV-2 que não mudam. O dispositivo de aplicação também é diferente. Não será necessário agulha. A vacina será administrada por um sistema que dispara um jato de ar sob a pele. Os voluntários devem estar imunizados com duas doses, mas não podem ter recebido o reforço. A previsão é que a primeira etapa do ensaio clínico dure um ano. Na avaliação dos pesquisadores, se der certo, a DIOS-CoVax será a primeira vacina universal contra a família dos coronavírus. Outra opção interessante em pesquisa é o imunizante das farmacêuticas Sanofi-Pasteur e GlaxoSmithKline. A vacina encontra-se em fase 3, a última antes da submissão dos resultados às agências regulatórias para aprovação. Além de ter sido desenhada para agir sobre diversas variantes do coronavírus, as empresas estudam se ela poderia ser usada como dose de reforço para quem fez o esquema vacinal com produtos de outros laboratórios.
A corrida para responder às mudanças genéticas dos vírus faz parte do trabalho dos cientistas que passam a vida monitorando alterações virais. A gripe, outra doença respiratória com impacto importante na vida humana, vem sendo contida exatamente dessa maneira. Há 104 anos, uma variante do Influenza (causador da gripe) provocou a maior catástrofe sanitária da história dos tempos modernos, matando cerca de 50 milhões de pessoas entre os anos 1918 e 1920. À época, nem sequer se sabia que por trás dos casos estava um vírus. Pensava-se que fosse uma bactéria. Atualmente, o Influenza se tornou endêmico — continua em circulação e provoca epidemias sazonais —, mas os sistemas de vigilância organizados pelo mundo identificam a variante prevalente das temporadas e em pouco tempo está à disposição da população uma vacina talhada para atacar especificamente o Influenza da vez. Esse será o caminho a ser seguido pelo coronavírus da Covid-19: ser mais um microrganismo endêmico neutralizado por vacinas periodicamente atualizadas.
A chegada de novos imunizantes abrirá espaço ainda para a distribuição de doses de acordo com grupos que respondem melhor a cada tipo de vacina. A oferta de produtos assim pode se configurar em ótima ferramenta quando for possível controlar a disseminação do coronavírus por meio de ciclos vacinais predefinidos. “Teremos a melhor vacina para idosos, imunossuprimidos, crianças e adolescentes”, diz Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). “Sabemos que pessoas com mais de 80 anos respondem pior a vacinas com vírus inativados, como a CoronaVac. No futuro, tendo vacinas suficientes a todos, será possível fazermos as divisões segundo os perfis.”
Contudo, tanto as companhias farmacêuticas quanto os serviços onde são conduzidos os estudos clínicos estão preocupados com um empecilho que pode atrasar a etapa dos testes em humanos. Os ensaios precisam ser feitos com número expressivo de voluntários. Porém, com o avanço da vacinação começa a ficar difícil encontrar participantes que ainda não tomaram nenhuma vacina em países como o Brasil, tradicional fornecedor internacional de grandes grupos de sujeitos de pesquisa (nome correto de pacientes que integram estudos clínicos). Por isso, executar as últimas etapas do desenvolvimento das novas vacinas tornou-se um desafio. “Neste ponto, as que estão disponíveis ou avançaram mais etapas estão em posição confortável”, afirma Ricardo Gazzinelli, da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e coordenador do Instituto Nacional em Ciência e Tecnologia de Vacinas. Apesar dos obstáculos, com certeza haverá vacinas disponíveis — só até o fim do ano passado, 11 bilhões de doses haviam sido produzidas —, quem sabe até com sobra. A ciência não nos deixará na mão. Agora, para que todo o mundo consiga respirar melhor em 2022, é preciso fazer com que elas cheguem aos países mais pobres, que não receberam nem 10% do total fabricado, e aos braços dos que ainda resistem à proteção. Sem uma cobertura vacinal uniforme, o fim da pandemia fica mais longe.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771