Nos últimos dois anos, a discussão sobre como conter o avanço da epidemia de obesidade no mundo ganhou um arsenal de promissores medicamentos, com potencial de levar a perdas de peso superiores a 20%, e foi retomado o debate sobre a importância de tratar a condição como uma doença que não deve ser estigmatizada, mas tratada com as opções mais atualizadas para oferecer qualidade de vida aos pacientes. Por outro lado, houve o uso desenfreado e sem indicação dos remédios que ficaram erroneamente conhecidos como “canetas emagrecedoras”, febre amplificada por celebridades.
Neste cenário de pessoas ávidas por Ozempic, Wegovy, Mounjaro e pelos resultados de testes com novas drogas, um dos especialistas mais renomados do Brasil, referência em estudos sobre o tema, vai assumir no próximo ano a presidência da Federação Internacional de Cirurgia da Obesidade e Distúrbios Metabólicos (IFSO). Ricardo Cohen, coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, conversou com VEJA sobre a missão de presidir a entidade global, os impactos dos tratamentos para a doença e no futuro da cirurgia bariátrica.
“A obesidade é uma doença geneticamente ativa. As pessoas precisam entender que não são drogas nem cirurgias para emagrecer, mas para ganho de vida e de saúde”, afirma. Leia os principais trechos da entrevista.
Estamos acompanhando a febre do Ozempic e demais medicações para obesidade, que foram inicialmente indicadas para diabetes tipo 2. O que mudou a partir do advento dessas drogas?
De onde veio a ideia de que tratar a obesidade é tratar diabetes? A perda de peso era algo deixado de lado no passado. O paciente com diabetes recebia prescrição de metformina e orientação para alterar o estilo de vida. Só que a obesidade não é fator de risco, porque não se trata fator de risco. A obesidade é uma doença que traz consigo outros problemas que são muito graves.
O senhor foi eleito presidente da Federação Internacional de Cirurgia da Obesidade e Distúrbios Metabólicos (IFSO). Quais serão as suas bandeiras?
Nessa gestão, vejo que a gente precisa mudar o foco de tratamento para obesidade e diabetes. Pacientes são o foco, mas pagadores, públicos e privados, e entidades médicas precisam entender que obesidade não tem fórmula mágica. Tudo faz parte do tratamento: dieta, atividade física e medicações para melhorar o desfecho. E é fundamental promover a educação de todos os envolvidos nisso com base na divisão de obesidade clínica, quando há disfunção renal, disfunção de mobilidade, gordura no fígado, e a subclínica, que precisa monitorar, mas o acompanhamento ocorre sem intervenção agressiva. Muita gente acha que obesidade é escolha, falha de caráter, mas é uma doença biológica com resposta biológica.
Como ocorreu a escolha do seu nome e como funciona o trabalho?
A entidade abrange cinco regiões do mundo, vai tendo um rodízio e chegou a vez da América Latina, de onde saiu meu nome. Como presidente eleito, tenho direito a voto e opiniões. O mandato começa em agosto de 2024, mas o trabalho já começou, porque sou o supervisor dos comitês de educação da federação.
Qual sua avaliação sobre como o tema da obesidade é tratado neste momento no Brasil?
É um momento importante, porque nunca se falou tanto de obesidade e diabetes. A consciência sobre o que chamamos de diabesidade está cada vez maior na cabeça das pessoas. Além disso, a população está aprendendo a ter menos preconceito e a gente está vivendo o momento de tirar a culpa dos pacientes. Mas também precisamos de conscientização sobre o uso dos medicamentos, porque temos celebridades querendo perder 3 kg para entrar em um vestido e pessoas que vão para Dubai para comprar tirzepatida e perder 10 kg em um mês.
A edição deste ano do Atlas Mundial da Obesidade apontou que, em 2035, teremos quase 2 bilhões de pessoas vivendo com obesidade, o que corresponde a 1 em cada 4 pessoas no mundo. O senhor acredita que é possível evitar essa situação por causa dos novos tratamentos?
Temos de dividir as ações em prevenção, como modificação dietética e exercício físico, e tratamentos. Se a pessoa tem genética para obesidade e diabetes, pode trocar sua forma de se alimentar e a chance de prevenir as doenças é muito grande, mas não adianta ter estratégia de prevenção sem o tratamento. As novas drogas têm vantagens, no entanto, têm a desvantagem da dificuldade de acesso por escassez e custo. Como é uma doença crônica e progressiva, a medicação precisa ser mantida.
O custo do tratamento é citado como um importante gargalo para a incorporação desses medicamentos pelos governos…
Eles vêm para mudar o panorama, porque as drogas são caras, mas quanto custa lidar com amputações, diálise, colocação de stent coronariano e demais quadros relacionados com a obesidade? Se o gestor de saúde pensar em longo prazo, vai ver que essas opções são custo-efetivas. É preciso entender a complexidade da obesidade e que os tratamentos são seguros e não é uma saída fácil nem a última saída. A obesidade é uma doença geneticamente ativa. As pessoas precisam entender que não são drogas nem cirurgias para emagrecer, mas para ganho de vida e de saúde. Propus que a gente comece com conversas com a Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica) e a SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) para chegar nos setores públicos e privados. As farmacêuticas estão dispostas a isso. É o objetivo de todo mundo e pensam muito parecido com a gente na América Latina.
Falando em cirurgia, com semaglutida (Ozempic e Wegovy), tirzepatida (Mounjaro) e, talvez, retatrutida, com índices de perda de peso perto dos 30%, como na bariátrica, o senhor acredita que esse procedimento pode não ser mais indicado no futuro?
A gente tem a genética da obesidade e o cenário favorece a obesidade. A vida é obesogênica. A obesidade não tem bala de prata, mas estamos cada vez mais próximos da remissão. A cirurgia bariátrica não vai acabar, porque vamos operar os pacientes que não respondem às medicações.