Quando a equipe de cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan, na China, publicou a primeira descrição do Sars-CoV-2, o coronavírus causador da Covid-19, iniciou-se uma das mais fascinantes epopeias científicas da história. O artigo saiu na revista Nature, um dos mais reputados periódico científicos, em fevereiro de 2020. O mundo estava tomado de medo de um vírus até então pouco conhecido que se espalhava rapidamente, levando pânico e morte por onde passava. As informações divulgadas, contudo, forneceram aos cientistas de todo o planeta conhecimento para que testes diagnósticos fossem criados e vacinas, desenvolvidas. Hoje, quase três anos depois do surgimento dos casos iniciais — acredita-se que tenham ocorrido em novembro de 2019 —, a pandemia está perto do fim.
Por trás dessa conquista, está a contribuição de uma mulher cujo nome quase ninguém conhece e que durante décadas permaneceu de fora das listas daqueles a quem a ciência reverencia apesar de estar associada a alguns dos principais avanços médicos dos últimos setenta anos. Trata-se de Henrietta Lacks (1920-1951), a negra americana que teve células extraídas para exame que acabaram revolucionando a maneira de estudar tecidos humanos vivos em laboratório. Em boa parte, graças a ela, campos como os da genética, da oncologia e de doenças infecciosas desenvolveram-se espetacularmente. A vacina contra a poliomielite e remédios antivirais que impedem o avanço do HIV, o vírus da aids, foram alcançados com a ajuda de seus corpúsculos.
Até então, em meados do século XX, fazer pesquisas em laboratório com tecidos humanos era um desafio. Células normais têm número definido para replicação e, portanto, não servem de material de estudo de grandes dimensões. Naquele tempo, no entanto, a sorte da ciência mudou graças à tragédia particular de Lacks, uma simples lavradora de tabaco. Casada, mãe de cinco filhos e residente em Baltimore, ela foi diagnosticada com um tipo agressivo de câncer de colo de útero por médicos do Johns Hopkins Hospital, à época um dos poucos realmente competentes no combate da doença à luz do que havia disponível.
Entre sessões de radioterapia, ela era submetida a biópsias durante as quais os fragmentos eram extraídos e enviados a George Gey, estudioso das relações entre câncer e vírus. Antes de receber as amostras de Lacks, Gey estava frustrado. Todas as amostras que lhe chegavam às mãos morriam rapidamente. Com as células dela, foi o contrário: dobravam de quantidade a cada 24 horas. Estava descoberta a primeira linhagem de células imortais capazes de se reproduzir indefinidamente em tubos de ensaio. Era o que a ciência precisava para deslanchar nos estudos in vitro. Foi o que aconteceu. A linhagem HeLa (das sílabas iniciais do nome e sobrenome da doadora) tornou-se matéria-prima seminal de investigação médica, atalho para a realização de trabalhos como os que deram origem às vacinas contra a Covid-19. Amostras foram inclusive enviadas em missões espaciais com o objetivo de descobrir o impacto da falta de gravidade no corpo humano.
Lacks morreria pouco tempo depois do início do tratamento. Nunca soube que células suas haviam sido retiradas e, depois, comercializadas. Sua família só veio a descobrir muitos anos depois. Na história da ciência, seu caso está gravado como uma das maiores injustiças cometidas contra um paciente e exemplo de falta de ética. A crescente pressão por regras claras e transparentes na execução de estudos científicos, no entanto, está obrigando a realização de um mea-culpa em relação ao que foi feito com a americana. O Johns Hopkins Hospital já fez uma retratação.
Na semana passada, foi a vez de a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciar um reconhecimento. A entidade nomeou integrantes da família como embaixadores nas ações para eliminar o câncer de colo de útero, a doença que a matou, até 2030. Na cerimônia, estiveram presentes seu filho, Lawrence, e quatro netos. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, justificou a escolha dos descendentes de Lacks como representantes do movimento dizendo ser uma forma de corrigir um erro e, ao mesmo tempo, de trabalhar para que as inovações desenvolvidas com a ajuda das células HeLa cheguem a todas as mulheres. “Muitas pacientes pertencentes a minorias raciais ou étnicas enfrentam riscos desproporcionais para o câncer”, disse Adhanom. “Precisamos fazer com que todas tenham acesso a prevenção, diagnóstico e tratamentos, muitos deles criados com a contribuição das células imortais de Lacks.” Demorou, mas enfim a justiça começa a ser feita.
Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814