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O que podemos aprender com os países que começam a sair da quarentena

A experiência lá de fora mostra que o retorno deve ser gradual e cercado de regras, o que não tira o legítimo prazer de pôr o pé na rua

Por Julia Braun Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Maria Clara Vieira Atualizado em 5 jun 2020, 13h25 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00

Parece sonho. Depois de mais de dois meses vendo o sol pela janela do apartamento ou, no máximo, do jardim de casa e convivendo com as mesmas pessoas — cada vez mais entediadas, cada vez mais entediantes —, boa parte da população do planeta começa enfim a pôr o pé na rua. Esse primeiro passo é cuidadoso, tateante e cercado de regras. E não é para qualquer um — ou, pelo menos, não deveria ser. Estão aptos à onda de liberdade vigiada os locais que só relaxaram as imposições quando a curva da pandemia dava uma trégua, a taxa de transmissão do vírus abrandava e o sistema hospitalar desafogava, o que abrange populações na Ásia e na Europa. Não estão prontas, mas mesmo assim já puseram a roda para girar, várias cidades nos Estados Unidos e no Brasil, países onde o número de vítimas está em linha ascendente, mas os governos acharam por bem correr riscos. “A liberação aqui é precipitada. Recomendo que seja feita com o máximo de responsabilidade e rigor”, alerta o epidemiologista Roberto Medronho. Dado o aviso, a perspectiva de sacudir o bolor do confinamento e voltar a ser dono de seu destino enche de gente e de animação lugares onde seres humanos não pisavam fazia tempo.

MISTURADOS - Rio de Janeiro: no primeiro dia da “reabertura”, não só o mar como as areias (ainda proibidas) encheram (Daniel Resende/Futura Press)

Sendo quase verão na Europa, e sendo os europeus adoradores do sol e do calor, as praias de lá estão no topo do processo de abertura lenta e gradual para a vida normal. Quase todas já foram liberadas, desde que se reparta a areia com responsabilidade: distância entre as barracas, máximo de quatro a dez pessoas em cada uma, obediência de mão e contramão e comércio zero de alimentos e bebidas — quem quiser leva o seu e volta com o lixo para casa. Portugal tem sinal verde, amarelo e vermelho para indicar o nível de ocupação. A Itália cogita em exigir reserva prévia de espaço. O Rio de Janeiro, depois de 79 dias sob isolamento social, começou na terça-feira 2 a afrouxar as normas, por meio de um plano em seis fases de quinze dias cada uma, até o fim de agosto. Já valem programas ao ar livre, inclusive caminhar no calçadão e entrar no mar para nadar ou surfar. Tomar sol, não — mas muitos foram direto se aboletar na areia, reforçando a veia de indisciplina capaz de, perigosamente, estragar qualquer cronograma.

REVOLUÇÃO - Paris: as mesas coladas ressurgiram afastadas (Bertrand Guay/AFP)

A liberação das praias na Europa, por mais que agrade à população local, tem o objetivo mais amplo de religar o motor da indústria do turismo, que responde por cerca de 10% do PIB da União Europeia (UE) e que foi posta na UTI, em estado gravíssimo, pelo novo coronavírus. As expectativas, no momento, estão concentradas na movimentação interna, embora a reabertura das fronteiras entre integrantes da UE esteja marcada para 15 de junho. Detentor de um dos melhores registros de controle da Covid-19 no continente, Portugal começou a retomada da vida normal cedo, em 4 de maio, e está na fase 4 do processo, com restaurantes, cafés, museus, palácios e monumentos funcionando. Fases e cores, aliás, estão no cronograma de todas as trilhas do desconfinamento. A Espanha se encontra na fase 2, com estabelecimentos fechados e locomoção entre cidades severamente limitada pelo menos até o fim de junho.

CONTINUA LINDO - Museu Van Gogh, em Amsterdã: apenas o chão mudou (Piroschka van de Wouw/Reuters)

“A recuperação ainda vai demorar”, constata Inés Miró-Sans, dona do hotel Casa Bonay, em Barcelona — cidade que recebeu 12 milhões de visitantes em 2019, dos quais 83% estrangeiros. Ah, bons tempos. Para onde quer que se viaje na pós-pandemia, a Comissão Europeia requer das empresas menor número de passageiros e check-­in e retirada de bagagens sem aglomerações, além de medição de temperatura em massa — uma medida positiva que o Aeroporto de Brasília, outra cidade brasileira apressada em acabar com o isolamento, já implantou. Os termômetros também são item de primeira necessidade nas escolas que já reabriram — na Coreia do Sul, divisórias de acrílico separam as carteiras.

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SOB MEDIDA – Loja em Milão: só entra quem passa pelo teste do termômetro (Miguel Medina/AFP)

Na vida cotidiana dos europeus, a maior preocupação das autoridades é conter o entusiasmo de quem estava louco para sair à rua e encontrar os amigos — o ponto de partida para os temidos repiques da Covid-19. “As pessoas querem esquecer a tragédia que viveram e estão se sentindo seguras demais. Isso é perigoso”, diz o epidemiologista italiano Marco Vinceti. “Repito todos os dias para minha família: cuidado, cuidado e cuidado.” As lojas reabriram em boa parte do continente. As de roupa, na Itália, têm de fornecer luvas aos clientes que quiserem tocar nas peças. Ar condicionado está proibido em toda parte, pelo potencial de transportar e espalhar o vírus. “Voltar à normalidade é como reaprender a andar: um passo de cada vez”, comparou o primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte. A frequência é limitada a 40%, 50% do espaço útil e os provadores sumiram, o que levou grifes como Zara e H&M a facilitar a política de trocas. Na maioria dos shopping centers, marcas no chão indicam o sentido a seguir e até os pontos de ultrapassagem. O acesso a banheiros ficou muito mais restrito.

ISOLAMENTO - Escola na Coreia do Sul: proteção de acrílico para os alunos (Kim Jun-beom/Yonhap/AP/.)

No capítulo entretenimento, a ida a cinemas e teatros se tornou uma experiência sem precedentes. Nas salas já abertas — Reino Unido e França ainda não permitiram — há mais assen­tos vazios do que ocupados, sempre comprados on-line, já que as bilheterias foram suprimidas. No esporte, nem isso: os campeonatos de futebol estão sendo retomados com estádios vazios. As normas contra aglomerações nos locais de lazer deram origem a um fenômeno na Europa — a reabilitação dos drive-ins para tudo, de filmes a apresentações de DJs (leia na pág. 70). Para regozijo da população em geral, e dos franceses em particular, os bares e cafés reabriram as portas, a maioria atendendo só na calçada. “A liberdade voltou a ser a regra e as restrições, a exceção”, comemorou, com certo exagero, o primeiro-ministro Édouard Philippe na terça-feira 2. No Reino Unido, os pubs e restaurantes permanecem fechados, mas as reuniões em casa estão autorizadas, desde que não passem de seis pessoas, ao ar livre, cada um com sua cadeira e poucas e rápidas idas ao banheiro — a única desculpa para entrar na casa. Do governo britânico partiu uma das propostas mais invasoras de intimidade de que se tem notícia em tempos de pandemia: casais que moram em casas diferentes não podem passar a noite juntos. Apesar das ruas e parques mais cheios do que o recomendado, as determinações têm sido respeitadas. “A maioria dos europeus tem disciplina, e quem não concorda cumpre as regras do mesmo jeito, por causa da fiscalização”, diz Narcisa Quiles, professora de imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade Complutense de Madri.

BANHO DE GEL - Estádio de futebol na Alemanha: o campeonato voltou à base de muita higienização e nenhuma torcida (Sascha Schuermann/AFP)

Transportados para o Brasil, que tem quase 600 000 contaminados e passou dos 30 000 mortos, o relaxamento da quarentena e a retomada das atividades deixam os especialistas preocupados. “Corremos o risco de uma explosão de casos, daí a necessidade de as pessoas manterem o freio”, explica Rafael Galliez, professor de doenças infectocontagiosas da Faculdade de Medicina da UFRJ. O retorno à normalidade requer estatísticas monitoradas e prazos revistos ao menor sinal de risco. “Considero os planos de abertura do Rio e de São Paulo coerentes e consistentes”, afirma o epidemiologista Medronho — desde que as regulamentações saiam do papel. No Rio, hotéis, concessionárias e lojas de móveis e de decoração já funcionam (com resultados financeiros ainda pífios, claro). Em São Paulo, shoppings e escritórios devem voltar à vida até 15 de junho. Em um primeiro momento, vão funcionar quatro horas por dia e ocupar um quinto de seu espaço. Uma das primeiras cidades a adotar medidas restritivas de circulação, Brasília também saiu na frente na retomada do comércio. Aprove-se ou não, as portas no Brasil estão se abrindo. Por mais forte e legítimo que seja o suspiro de alivio, contudo, ninguém pode baixar a guarda.

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ATENÇÃO, VIAJANTE – Aeroporto de Brasília: máquina projeta no telão a temperatura do corpo e checa o uso de máscara (Evaristo Sa/AFP)

Colaboraram Amanda Péchy, Mariana Zylberkan, Sofia Cerqueira e Hérica Marmo

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Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690

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