O Mais Médicos é vital
O impacto positivo do programa foi comprovado. Mas há desafios a curto prazo, como estimular o profissional brasileiro a interessar-se pela atenção básica
A sociedade brasileira passa por um momento de transformações demográficas significativas, e elas afetam diretamente o direito à saúde. O Sistema Único de Saúde — o SUS, criado pela Constituição de 1988 e regulamentado em 1990 — enfrenta imensos desafios em decorrência do baixo investimento, da escassez de recursos e de nós de gestão. A população está insatisfeita com o atendimento médico de origem pública. Os profissionais reclamam de remuneração inadequada, de falta de infraestrutura e de limitados investimentos em pesquisas e tecnologia. Some-se a esses temas centrais, para agravar ainda mais o cenário, a concentração de médicos nas grandes capitais e regiões metropolitanas. Hoje, resolver essa questão da distribuição é essencial para garantir atendimento de qualidade à população.
Apesar do expressivo crescimento da quantidade de médicos no Brasil em um curto período de tempo, os problemas são evidentes. Houve um aumento de 23% no número de profissionais nos últimos sete anos. Em 2017, estavam registrados 451 777 homens e mulheres, segundo uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e financiada pelo Conselho Federal de Medicina e pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Enquanto o Distrito Federal tem 4,35 médicos para cada 1 000 habitantes, média semelhante à da Suíça, estados do Norte e do Nordeste, como, por exemplo, o Maranhão, têm 0,87 médico para o mesmo grupo de pessoas. Em cidades com menos de 5 000 habitantes, a proporção é ainda menor — 0,3 profissional para cada 1 000 pessoas. É uma taxa semelhante à de países africanos.
“Não tenho dúvida do impacto imediato que a saída dos profissionais cubanos pode causar ao programa”
Para as entidades médicas, a disparidade na distribuição dos profissionais é consequência da ausência de políticas públicas que estimulem sua permanência em regiões de menor procura. Entre os problemas apontados, estão a precariedade do emprego, a dificuldade de acesso a programas de educação continuada e a falta de condições adequadas de trabalho, destacando-se a infraestrutura deficiente e o pouco acesso a material e medicamentos. A desigualdade não é somente geográfica, mas no próprio sistema de saúde. Há ainda grande concentração de profissionais que trabalham apenas nos sistemas privados ou em determinadas especialidades da medicina.
O Programa Mais Médicos, iniciativa do governo federal implementada em 2013, teve o apoio de estados e municípios. O objetivo de sua criação é claro e necessário: a melhora do atendimento aos usuários do SUS. O programa visa a garantir o acesso à atenção básica de populações desassistidas, concentradas majoritariamente no Norte, no Nordeste e nas periferias das grandes cidades, tendo em vista a forte resistência da maioria dos profissionais qualificados do país a fixar-se em tais regiões.
Além de levar mais médicos para regiões onde há escassez ou ausência desses profissionais, o programa tem como meta a ampliação de investimentos para a construção, a reforma e a ampliação de Unidades Básicas de Saúde. Novas vagas de graduação e residência médica para melhorar a qualificação desses profissionais complementam as propostas. Assim, o programa busca resolver a questão emergencial do atendimento básico e, simultaneamente, criar condições para continuar a garantir o acesso qualificado na rede do SUS.
O Mais Médicos nasceu de mãos dadas com um conjunto de ações e iniciativas para o fortalecimento da atenção básica no país, que é a porta de entrada preferencial do SUS. Nesse atendimento inicial, 80% dos problemas de saúde são resolvidos. Até recentemente, o programa contava com um total de 18 240 vagas em 4 058 municípios de todo o país, cobrindo 73% das cidades brasileiras e 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas e garantindo assistência a aproximadamente 63 milhões de pessoas. É muita coisa.
Segundo o Ministério da Saúde, os profissionais brasileiros tiveram prioridade no preenchimento das vagas ofertadas. Os postos remanescentes foram oferecidos primeiramente aos brasileiros graduados no exterior e, em seguida, aos estrangeiros. Enquanto portugueses, argentinos e espanhóis se inscreveram voluntariamente no programa, os cubanos atuavam como prestadores de serviço de um pacote negociado pelo governo de Cuba com o Ministério da Saúde, que contou com a intermediação da Organização Pan-Americana da Saúde, da Organização Mundial da Saúde. Como resultado, teve início, em 2013, a chegada de 8 500 médicos cubanos para participar do Mais Médicos.
“Para oferecer saúde digna a todos, é tempo de unir classe médica, governo, universidades e entidades”
O impacto positivo do programa pode ser comprovado objetivamente. Estudos realizados pela Fundação Getulio Vargas e pela Universidade Federal de Viçosa, com base em dados do SUS, demonstraram redução de 4,6% no número de internações nas cidades que aderiram ao Mais Médicos. A oferta de profissionais nos municípios cresceu 18%. As consultas médicas subiram 8%. As visitas domiciliares, para atender pessoas incapacitadas de se locomover até um posto de saúde, aumentaram 29,7%.
Em novembro de 2018, o governo cubano anunciou o fim de sua participação no programa, e muitas incertezas surgiram desde então. Não tenho dúvida do impacto imediato, e ruim, que a saída dos profissionais cubanos pode causar ao Mais Médicos, pondo em risco o atendimento da população, sobretudo se não forem adotadas medidas emergenciais efetivas. Esses médicos prestavam serviços básicos de saúde a cerca de 8 milhões de famílias brasileiras, que compõem quase 30 milhões de pessoas. Estavam distribuídos em 2 800 municípios. Eram os únicos provedores de assistência médica em mais de 1 500 municípios com menos de 20 000 habitantes e em locais vulneráveis e remotos, com baixo índice de desenvolvimento humano, como a região amazônica e o semiárido nordestino.
A população, sem a assistência médica básica antes oferecida pelo programa, buscará hospitais e clínicas de maior complexidade e mais caros para atendimento primário, o que vai sobrecarregar o sistema de saúde. A rede organizada e hierarquizada entre os atendimentos primário, secundário e terciário é um dos elementos essenciais para a eficiência desse sistema.
Para oferecer saúde digna a todos, é necessário unir classe médica, governo, universidades públicas e privadas, além de entidades associativas, com o intuito de estimular o profissional brasileiro a tomar posse do Programa Mais Médicos como parte fundamental do nosso sistema de saúde. A prevenção e o controle de fatores de risco cardiovasculares, como hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia, são hoje primordiais para a população brasileira. A valorização e a implementação de políticas públicas de saúde como o Mais Médicos são uma iniciativa que deve contribuir para a estruturação dos serviços de saúde pública no Brasil. Precisamos ter como objetivo o fortalecimento e o incentivo dos estudos médicos e também a humanização diante das necessidades básicas populacionais.
Os desafios a curto prazo são investir em educação médica continuada, gerar melhorias de infraestrutura no interior do Brasil e estimular o médico brasileiro a se interessar pela atenção básica desde a graduação. O foco em prevenção e promoção da saúde deve ser implantado já no início da formação acadêmica. O trabalho do profissional voltado para o atendimento generalista atende a uma necessidade atual da medicina, com enfoque na visão biopsicossocial do paciente. Além disso, o médico desenvolverá habilidades pessoais que servirão como base para uma carreira sólida. O exercício da medicina em cenários adversos contribuirá ainda para a formação de um médico em sua plenitude. Também é preciso chamar atenção para a qualificação do nosso médico. Devemos buscar rigidez técnica no credenciamento e na aprovação de novos cursos médicos, além de promover a revisão dos já credenciados. A avaliação tem de incluir infraestrutura, qualificação do corpo docente, qualidade do hospital-escola, parcerias nacionais e internacionalização do curso (vínculo com outras instituições nacionais e externas), modernização do ensino (cursos a distância, uma melhor qualidade das aulas, ferramentas de aprendizado, avaliações, ensino prático) e supervisão direta da prática da medicina.
A valorização da saúde básica deve ser incutida nos alunos brasileiros desde o princípio do curso, permeando todo o período da graduação e os primeiros anos da residência médica. O uso de tecnologia será essencial para o sucesso do programa, assim como o acesso a métodos de ensino a distância, a informatização de processos, a telemedicina e a reorganização da rede, além de remuneração adequada, gerenciamento de metas e treinamento permanente. Dessa forma, tenho absoluta certeza de que os médicos brasileiros se dedicarão à saúde básica, independentemente da localização geográfica, cumprindo seu papel junto às populações mais carentes com imenso comprometimento e compaixão, essência da nossa profissão.
* Roberto Kalil Filho, professor titular de cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), é presidente do Instituto do Coração doHospital das Clínicas da FMUSP e diretor do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614