Com 198 milhões de consumidores no mundo, e uma estimativa de 1,5 milhão no Brasil, a maconha é a mais popular de todas as drogas. Restrita ou ilícita na maioria dos países, ela é também a mais estudada para uso medicinal. O composto de maior interesse dos cientistas chama-se canabidiol, encontrado em pequeno volume no caule e na folha da erva Cannabis. Ele não é psicoativo nem tóxico. Não causa dependência, não altera o raciocínio nem provoca a perda cognitiva, como faz o tetraidrocanabinol (THC), substância psicotrópica da planta. Na verdade, conforme demonstra recente estudo publicado na revista científica The Lancet, o canabidiol pode ser capaz de combater o vício da própria droga.
Pesquisadores da unidade de psicofarmacologia clínica da University College London, no Reino Unido, conduziram testes com 48 usuários de maconha por quatro semanas. Dividiram os voluntários em grupos iguais que receberam, por via oral, doses de 200, 400 e 800 miligramas de canabidiol, sendo que a um grupo foi dado apenas placebo (líquido inerte). A dose de 200 miligramas foi ineficaz, mas, na segunda fase, com mais 34 participantes, o composto mostrou-se promissor na redução da dependência com 400 e 800 miligramas e, mais importante, seguro para os pacientes. Segundo o pesquisador-chefe Tom Freeman e sua equipe, uma vez que não existe no momento nenhuma outra farmacoterapia, um tratamento que reduzisse a dependência seria um grande avanço.
O psiquiatra José Crippa, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, centro de referência nos estudos com o canabidiol no país, concorda com os cientistas europeus: “O resultado abre um caminho extraordinário na medicina, pois se trata da primeira vez que uma substância impacta no vício da Cannabis”. Sabe-se que um em cada dez usuários de maconha se torna dependente, e o número quase dobra quando o consumo começa na adolescência. Em sua forma natural, ela pode ser menos viciante que a cocaína, o álcool e o cigarro. Na última década, porém, a erva passou a ser manipulada de modo a conter uma quantidade maior de THC — a concentração que às vezes era de menos de 1% na década de 60 chega a ser hoje trinta vezes maior. “Na prática, estamos falando de outra droga, modificada, muito mais potente e perigosa”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad).
O canabidiol já é aprovado para o controle da epilepsia e esclerose múltipla quando o paciente não reage a outros medicamentos. Seu uso medicinal foi resultado de uma longa batalha travada com as autoridades brasileiras, especialmente com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que só regulamentou o composto no ano passado. Por muito tempo, portadores de epilepsia tiveram de recorrer à Justiça para conseguir o produto ou se arriscar a importá-lo clandestinamente. Além dos testes de redução de dependência, ele vem sendo usado experimentalmente no tratamento de esquizofrenia, depressão e Alzheimer — neste caso, com resultados promissores na melhora das funções motoras e cognitivas. Na dualidade típica da natureza, a planta que gera o mais famoso dos entorpecentes também produz o mais poderoso dos remédios.
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715