Faz um mês e meio que Benicio, de 6 anos, e as gêmeas Joana e Laura, de 3, não põem os seus pezinhos na escola paulistana em que costumavam passar quase onze horas por dia, enquanto os pais, Mathias D’Onofrio e Juliana Magoga Pereira, trabalhavam — ele, como gerente de um banco estrangeiro, e ela na mesma função numa multinacional do setor farmacêutico, o que lhe exigia viagens constantes. A mudança começou quando as medidas de distanciamento social se tornaram mais rígidas. As aulas foram suspensas, mas, por sorte, o casal havia programado férias antes da pandemia e conseguiu contornar a situação nesse período. Depois, veio o baque: com Mathias de volta ao expediente fora de casa, como dar conta do trio de traquinas agora confinado, mesmo estando Juliana acostumada ao home office.
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Clique e AssineDe uma hora para outra, milhões de famílias, mundo afora, se viram diante de tal tipo de dificuldade: conciliar tarefas profissionais com a atenção aos filhos no ambiente doméstico. “No início foi complicado. As crianças não entendiam o porquê de eu estar em casa e não poder ficar 100% disponível para elas”, relata Juliana. “A saída foi mudar a rotina. Hoje acordo mais cedo para adiantar algumas atividades. E temos novos hábitos, como tocar teclado em família, que se tornou uma terapia para nós”, diz ela. Naturalmente, o surto do novo coronavírus não inventou o sistema de home office — menos ainda a inquietação típica de quem está na infância. Embora as duas coisas jamais houvessem se encontrado de forma tão desconcertante como no atual surto, os percalços para equilibrar o ofício com rebentos entre quatro paredes já tiveram até seu “momento meme”. Em 2017, Robert Kelly, analista político americano, falava ao vivo no canal de TV da rede inglesa BBC, diretamente da Coreia do Sul, onde vive com a mulher e um casal de filhos, quando a dupla invadiu o cômodo no qual ele se encontrava. Kelly ainda tentava afastar a menina na hora em que a esposa, atônita, surgiu ao fundo, correndo, para conter o garoto. A confusão foi tamanha que a transmissão acabou interrompida. O vídeo viralizou, acumulando quase 40 milhões de visualizações. Comentando, recentemente, em entrevista à BBC — ao lado de toda a família —, o trabalho na quarentena sul-coreana, o analista reconheceu: “Tem sido difícil ficar em casa. Estamos sempre brigando com nossos filhos. Eles não têm nada para fazer, então estão quase subindo pelas paredes”. E completou: “Por isso me sinto feliz com o fato de o isolamento estar sendo afrouxado. Vamos poder levá-los para fora, a fim de que gastem um pouco de sua energia”.
Bem, e até lá? Tome-se o caso do Brasil, que nem de longe poderia pensar em abandonar a quarentena de imediato. Aqui, cerca de 60% dos trabalhadores migraram para o home office desde a eclosão do surto de Covid-19, de acordo com um levantamento feito pela Hibou, especializada em pesquisas. E dá para fazer as tarefas sossegado? “Para que alguém trabalhe em casa, é preciso que se tomem várias providências prévias”, explica Max Gehringer, consultor de carreiras e autor de diversos livros sobre essa área. “É importante ter um local que permita concentração, e também o entendimento, por parte da família, de que a pessoa trabalhando em casa está em horário de expediente, indisponível para demandas domésticas.”
Às vezes, nada parece funcionar. Para o economista inglês Nicholas Bloom — que em 2015 publicou um estudo em que mostrava que os empregados de um call center chinês que trabalhavam de casa eram 13% mais produtivos do que os que iam à empresa —, não adiantou sequer trancar o escritório durante reuniões on-line. Um dia, sua filha pequena, frustrada por não poder interagir com o pai, quis entrar de todo jeito. “Tive de continuar como se não estivesse ouvindo nada, torcendo para que ninguém conseguisse ouvir os gritos dela”, conta Bloom.
Segundo o psicobiólogo Ricardo Monezi, especialista em medicina do comportamento na PUC-SP, é fundamental que, diante da fase inusitada pela qual passa a humanidade, os pais não cobrem demais de si mesmos nem dos filhos; procurem dialogar com eles; e, acima de tudo, aproveitem ao máximo a inesperada proximidade entre os membros da família trazida pela pandemia. “Não há dúvida de que esta é uma chance incomum para que pais e filhos se conheçam melhor e aprendam mais uns sobre os outros”, afirma ele.
Para a historiadora Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que busca inspirar lideranças públicas a impactar positivamente a vida das crianças no país, a realidade decorrente da epidemia vai, na mão contrária, influenciar questões do trabalho: “Pense nas reuniões. Será que elas são mesmo necessárias ou estamos apenas recriando, dentro de casa, o modelo adotado no escritório?”.
Uma pesquisa da Universidade de Chicago (EUA) revelou que cerca de 34% dos postos de trabalho poderiam ser ocupados de dentro de casa. Assim, não é despropositado imaginar que, vencida a Covid-19, ao menos parte do mercado profissional será retomada em novo formato. E, no futuro, a geração dos filhos de Benicios, Joanas e Lauras verá tudo como um tempo difícil enfrentado por seus pais e avós — que, felizmente, passou.
Colaborou Alexandre Senechal
Publicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº 2686