Mitos e verdades sobre alimentos considerados saudáveis
Com base na balela de que fazem bem e não engordam, comidas cujos benefícios não são reais ou não foram comprovados têm consumo cada vez maior no país
Toda mudança de comportamento pressupõe, historicamente, um manifesto que a oriente — se fosse o caso de apontar um documento deflagrador dos novos hábitos alimentares do mundo ocidental, a melhor escolha seria o livro Em Defesa da Comida, do americano Michael Pollan, lançado em 2008 e que atravessaria um par de anos na lista dos mais vendidos, nos Estados Unidos e também no Brasil. Não por acaso o título tinha o aposto que lhe cabia perfeitamente — “um manifesto” —, pela força de suas teses e por seu extraordinário poder de reunir os conhecimentos adquiridos no passado para misturá-los em um liquidificador com as descobertas do presente. Instado a responder à pergunta supostamente complicadíssima sobre o que os seres humanos devem comer para ser saudáveis ao máximo, Pollan anotou: “Coma comida. Não em excesso. Principalmente vegetais”. E acrescentou em outra obra, numa frase já antológica, dada sua concisão didática: “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”. O raciocínio de Pollan, ancorado nessas duas afirmações, irretocáveis, funcionou à perfeição até ser atropelado pela velocidade das informações que circulam nas redes sociais, pelo excesso de palpites transformados em leis científicas e, sim, pela proliferação de fake news (olha elas aí, onipresentes) no trato com o que digerimos. O exagero e a desinformação nos trouxeram ao ponto em que estamos hoje: a louvação de supostos alimentos mágicos, que de mágicos nada têm, e que poderiam ser definidos como falsos saudáveis. É tanta propaganda enganosa que até nossas avós cairiam na balela — e não se trata, simplesmente, da condenação dos produtos industrializados. Há mentiras a respeito de frutas, vegetais, cereais, leguminosas e grãos, esses que existem desde sempre na natureza.
Dificilmente a musa fitness do Instagram postará a foto de um suculento hambúrguer de carne de vaca — mas é certo que alardeará a receita do prato preparado com carne de soja. Presunto e salame? Nem pensar. Uma fatia de peito de peru no café da manhã? Com certeza. Carne de soja e peito de peru são recomendáveis, ainda que um tanto sem graça, ressalve-se, mas não resolvem todos os problemas do mundo. “Supervalorizar um alimento pela fama de ser saudável é tão ingênuo quanto demonizar outros a ponto de excluí-los de sua dieta”, diz o endocrinologista Francisco Tostes, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. As coisas andavam em banho-maria, na trilha doméstica proposta por Pollan, até que, em 2011, outro livro, Barriga de Trigo, do cardiologista americano William Davis, pôs em cena um personagem que viraria símbolo da atual onda de propagar benefícios nem tão positivos assim e divulgar malefícios nem tão prejudiciais: o glúten, proteína encontrada no trigo, na cevada e no centeio. Ele teria de ser banido por fazer mal à digestão. E o glúten virou vilão, sobretudo entre pessoas de alto poder aquisitivo. Colou, porque subtraí-lo da dieta — e, portanto, reduzir o consumo do trio trigo-cevada-centeio — faz perder peso, devido à supressão do pão, do macarrão, de bolos, biscoitos e tortas, além de outros carboidratos simples de índice glicêmico elevado. Não há nada, contudo, que comprove os danos provocados pelo glúten, a não ser para quem tem alguma intolerância à substância, como os portadores de doença celíaca — e, nesses casos, o glúten causa atrofia da mucosa do intestino, prejudicando a absorção de nutrientes. Os celíacos representam menos de 1% da população. Ainda assim, estima-se que 3 milhões de americanos saudáveis tenham declarado guerra ao glúten. No Brasil, levantamento realizado em 2017 pela área de Pesquisa e Inteligência de Mercado da Editora Abril mostrou que 19% dos adultos aderiram ao modismo “não ao glúten” como quem pretende derrubar um presidente.
No rastro dos sem-glúten, a tapioca imperou na mesa dos brasileiros. Aficionados de treinos e regimes pouco calóricos se esbaldam com rodelas de tapioca por acreditar que fornecem energia sem fazer engordar. Afinal, tapioca não tem glúten. O senso comum informa ainda que é saudável por ser cheia de fibras e proteínas. Mas não, isso é um mito. A verdade: o alimento, feito da fécula extraída da mandioca, não tem nem fibras nem proteínas. A título de comparação, é melhor levar à boca uma fatia de pão integral (que os muitíssimos sadios puseram de lado), que contém razoáveis 6,8 gramas de fibras e 10 gramas de proteínas. E convém lembrar aos incautos que cinco colheres de tapioca têm excessivos 240 gramas de calorias, quantidade equivalente à de duas bananas inteiras.
Como as ondas nutritivas nunca brotam sozinhas, levantamento do Ibope realizado no ano passado mostrou outro fenômeno na postura alimentar dos brasileiros: 30 milhões de homens e mulheres se dizem vegetarianos ou veganos. Nada de muito errado, não fosse por um detalhe: os comestíveis de origem animal são relevantes fontes de nutrientes para o organismo, em especial proteína e cálcio. Expulsá-los da dieta pode ser má ideia. Para suprir a necessidade de proteína, por exemplo, a maioria das pessoas recorre à chamada “proteína texturizada de soja”. O.k., é comprovadamente um alimento riquíssimo em proteínas. Mas tem compostos que inibem a absorção de nutrientes no organismo, além de fitoestrógeno, substância semelhante ao hormônio feminino estrogênio, que, em excesso, pode levar à puberdade precoce nas meninas e ao aumento de mamas nos meninos. A maior parte da soja consumida no mundo, no entanto, é geneticamente modificada, o que, para os puristas, poderia provocar males, como alguns tipos de câncer — embora não existam, ainda, evidências científicas para alarde. Um conselho, como sempre: o bom-senso. Diz Eduardo Rauen, nutrólogo do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: “Ainda está muito cedo para dizer que a soja modificada não causa problema algum à saúde, mas também não podemos afirmar que faz mal”.
As promessas vãs dos alimentos se propagam com rapidez, e sem transparência, nas prateleiras dos supermercados na forma dos ultraprocessados — aqueles repletos de ingredientes prejudiciais à saúde, como corantes, conservantes, aromatizantes e gorduras nocivas, combinação explosiva se consumidos em excesso. O rótulo desses produtos raramente traz informações precisas. O consumidor tem de saber o que significa, por exemplo, “xarope de frutose”, “óleo interesterificado” e “gordura vegetal hidrogenada” — a famigerada gordura trans, uma substância criada artificialmente em laboratório com óleos vegetais para aumentar o prazo de validade dos alimentos e permitir textura crocante. Um recente estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor em parceria com a Universidade de São Paulo analisou a embalagem de 11 000 itens encontrados em lojas das cinco maiores redes de supermercados do país. Do total, 18,7% contêm ou podem conter gordura trans — e apenas 7,4% trazem no rótulo a informação sobre a presença da substância. Está em discussão na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) uma saída para corrigir o problema. As alterações propostas, ainda sem data para ser definidas, incluem maior clareza na listagem dos ingredientes, com letras maiores e dados organizados, além de alertas vistosos sobre a qualidade nutricional. É assim nos Estados Unidos e na Europa. A iniciativa é extraordinária, mas de nada servirá se os mitos continuarem a se propagar. Na dúvida, vale voltar ao axioma de Michael Pollan: “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”.
Publicado em VEJA de 17 de julho de 2019, edição nº 2643
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br