Como o senhor recebeu a notícia da chegada da Covid-19 aos índios? Para minha surpresa, locais remotos registraram a ocorrência da doença, como as comunidades ianomâmis em Roraima e o Vale do Javari, no Amazonas. Estávamos mais preocupados com os guaranis no Jaraguá, em São Paulo, pela proximidade com a área urbana. É desconcertante saber que quem mora na floresta está exposto do mesmo jeito.
O senhor acredita que os indígenas estejam em maior risco? A ideia de que os índios vivem uma intensa fricção coletiva é uma construção histórica. Há comunidades onde as pessoas têm regras por grupo de idade e não se misturam. Os missionários adoram chamar os espaços indígenas de promíscuos — eles é que são. Convocam centenas de pessoas aos templos e andam colados no presidente. Vão acabar contaminando a todos.
E os povos isolados? Se ninguém tentar contato com os isolados, eles serão os mais protegidos do mundo. É uma UTI coletiva. Vivam os isolados! Temos de assegurar que os tomadores de decisão respeitem a autonomia das comunidades e não se metam no meio delas, como um grupo de missionários americanos que foi recentemente ao Vale do Javari. O que eles querem na floresta? Catequizar? Ou levar o contágio?
A forma de lidar com a floresta será diferente depois da pandemia? Depende da perspectiva. Se alguém estiver cogitando retomar as atividades do mesmo jeito, nada mudará. É preciso parar para uma profunda reflexão.
O que deveria mudar? O Estado de Minas Gerais, onde vivo, foi devastado pela mineração nos últimos 500 anos. O Brasil vive como uma plataforma extrativista para vender minério ao resto do mundo. Vamos fazer o mesmo com a Amazônia? É estúpido. São como porcos dentro da floresta caçando pedras preciosas. Fico indignado com a obsessão que as pessoas têm pelo garimpo.
O que esperar do poder público? Nem sei se temos um governo. Depois de ver o bate-boca entre o ex-ministro da Saúde e o presidente, cheguei à conclusão de que estamos à revelia. Se os cidadãos não tomarem conta de si mesmos e se protegerem deste caos social, estarão sujeitos a tudo.
Há questões que se tornaram mais evidentes com o novo coronavírus? Tentaram desmantelar o subsistema de saúde indígena. Agora ele é útil no combate à Covid-19 em locais remotos. É uma oportunidade para entender como priorizaram cortes em áreas essenciais, como a saúde. Hoje tem muita gente dizendo que é um escândalo acabar com as políticas voltadas para a diminuição da desigualdade.
Para o senhor, a sociedade mudará após o surto global? A natureza está se manifestando de uma forma surpreendente, com os pássaros, a vegetação e a água limpa dos rios. Se tanto melhorou, não há por que regressar ao estágio anterior. Acredito em alternativas para não colocar o carro na avenida e enfrentar um engarrafamento. Se tudo voltar como se nada tivesse acontecido, não teremos aprendido nada.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684