Quando a pandemia começou, eu estava me recuperando de uma fratura. Em fevereiro, passei por uma cirurgia na perna decorrente de uma queda durante uma escalada. Quebrei a fíbula e a tíbia em dez partes, e tive de pôr três placas e doze parafusos. Para quem fez medicina por vocação, a vontade de ajudar o outro está no DNA. Assim que pude pôr o pé no chão, ainda de muleta, fui dar plantão no hospital de campanha do Anhembi, em São Paulo. Atendi de abril a julho, quando o lugar foi fechado.
A experiência na linha de frente da Covid-19 se relaciona muito com as minhas vivências em escaladas e expedições, sobretudo em três pontos: o distanciamento, a paciência e o foco. O distanciamento é a semelhança mais óbvia. Quando vou para montanhas, fico dois meses isolada. Mas é completamente diferente do que tivemos durante a quarentena, em que todos se falam via internet. Ouvi muita gente reclamando do isolamento, mas é um isolamento entre aspas. Na montanha, perde-se todo tipo de conexão. Só há mais duas ou três pessoas com quem conversar. O mundo está distante, praticamente inalcançável.
Quanto à paciência, a analogia é simples: não se escala uma montanha como o Everest em uma semana. Leva cinco, seis semanas. Demanda tempo, dedicação, resiliência. E a Covid-19 exigiu tudo isso não só de mim, mas principalmente dos pacientes. Quando eu conversava com eles, contava das minhas escaladas para acalmá-los quando perguntavam se receberiam alta em breve. Eu dizia que o corpo precisa de um tempo para se recuperar, tanto nas expedições quanto no caso dos doentes.
Em relação ao foco, é preciso lembrar que a escalada é um esporte mental. A pessoa precisa estar no presente, atenta. Eu falava para os meus pacientes: “Sei que é difícil passar por isso sem a sua família e sem saber o que vai acontecer, mas você precisa se concentrar na sua recuperação, viver o agora”. É como nas expedições: há um desafio a ser enfrentado. Se você deixar a mente pregar peças no seu corpo, não vai conseguir.
De certa forma, o coronavírus deixou mais marcas que o Everest. Meu pai contraiu a doença durante os meses em que eu trabalhava no hospital. O quadro era severo e ele teve de ficar intubado por trinta dias. Isso me ajudou a entender o sofrimento dos pacientes e de seus familiares. Pude sentir a dor na pele, entender as melhores formas de lidar com ela. Um dia, me chamaram para avisar que não sabiam se ele iria se recuperar. Quando meu pai finalmente voltou a falar, a primeira coisa que disse foi: “Hoje vai ser um ótimo dia”. A força mental dele ajudou na recuperação. Usei esse exemplo para lidar com as famílias dos pacientes.
Aprendi muito com o trabalho no hospital de campanha. Tive todos os tipos de paciente. Atendi um homem adoecido cuja mulher também estava internada por Covid-19. Organizei videochamadas entre os dois para ajudá-los a se fortalecer. Eu fazia esse tipo de coisa antes de existir a lei que, agora, exige a divulgação de um boletim diário sobre o estado do paciente para a família, pois sabia da importância do contato entre as pessoas.
Eu escolheria escalar o Everest dez vezes em sequência do que passar por tudo isso de novo. As dificuldades são mais simples. Perto do coronavírus, subir o Everest foi fácil. Ninguém sai de uma expedição dessa igual. A jornada e os desafios marcam o alpinista para sempre, transformam o ser humano. Podemos falar a mesma coisa sobre a Covid-19. A humanidade está saindo transformada da crise. Cada um do seu jeito, é claro. Todos aprendemos algo, mudamos em algum aspecto. Esperemos que seja para melhor.
Depoimento dado a Sabrina Brito
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702