Faz bem ou faz mal? Mais um capítulo na guerra dos adoçantes
Estudo recém-publicado volta a colocar um tipo de edulcorante sob suspeita. Mas é preciso entender os bastidores das pesquisas que chegam a essas conclusões
E saiu mais um estudo inconclusivo sugerindo sem provar que, talvez, alguns adoçantes, em algumas circunstâncias, podem fazer mal para a saúde. Não se passaram nem três meses desde que um estudo indicou que o xilitol, um álcool adoçante com baixo valor calórico e baixo índice glicêmico, poderia elevar o risco de coágulos sanguíneos e estava associado a um maior risco de eventos cardiovasculares. Naquela ocasião, afirmei que o teste realizado pelo grupo de pesquisa de Marco Witkowski, da Cleveland Clinic (EUA), era interessante – e preocupante –, mas precisaria ser corroborado por metodologias mais robustas.
Para recapitular: o teste consistiu em examinar amostras de sangue de 10 voluntários saudáveis, antes e 30 minutos após a ingestão de uma solução adoçada com 30 gramas de xilitol. A análise mostrou que os níveis plasmáticos de xilitol aumentaram 1.000 vezes em 30 minutos e retornaram ao normal entre 4 e 6 horas depois. Além disso, observou-se a ativação de várias medidas funcionais da responsividade plaquetária, sugerindo uma possível relação entre o consumo de xilitol e a agregação de plaquetas (constituintes do sangue responsáveis pela coagulação).
Contudo, como se tratava de uma amostra pequena e não havia estudos que corroborassem este achado, deveríamos aguardar novas pesquisas e continuar considerando o adoçante uma opção segura – desde que consumido dentro dos limites recomendados – para reduzir o consumo de açúcar.
Aquela não havia sido a primeira vez em que Witkowski e seus colegas se debruçaram sobre a possível associação entre um álcool adoçante e desfechos cardiovasculares. Um ano antes do estudo sobre o xilitol, haviam investigado uma possível relação entre o consumo de eritritol, um adoçante com características semelhantes ao xilitol, e a ocorrência de ECAM (eventos cardiovasculares adversos importantes, como infarto e acidente vascular encefálico, entre outros).
Em ambos os artigos, os autores concluíram que níveis aumentados de eritritol – ou xilitol – no plasma estavam associados a um aumento no risco de trombose ou outros incidentes. Eles sugeriram que as pessoas, especialmente aquelas com maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares, evitassem o consumo desses adoçantes até que novos estudos fossem realizados.
Agora há um novo capítulo da esta série.
O novo estudo
Witkowski e seus colegas acabaram de publicar uma pesquisa com o objetivo de avaliar o impacto do consumo de eritritol ou glicose em vários índices de responsividade plaquetária (a capacidade das plaquetas de se ativarem e agregarem) em voluntários saudáveis.
A pesquisa incluiu 20 participantes não fumantes, sem doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes, e sem histórico clínico recente de uso de medicação antiplaquetária ou de sangramentos. Foram divididos em dois grupos: o grupo intervenção, que recebeu uma solução de água adoçada com 30 g de eritritol, e o grupo controle, que recebeu uma solução de água adoçada com 30 g de açúcar.
Para avaliar o possível efeito do consumo de eritritol, os voluntários foram instruídos a realizar um jejum noturno. No dia seguinte, amostras de sangue foram colhidas. Depois, os participantes receberam uma das duas soluções e foram orientados a ingeri-las. Novas amostras foram colhidas 30 minutos mais tarde.
Além de análise dos níveis de eritritol e glicose no sangue, foram conduzidos testes de agregação plaquetária nas amostras colhidas dos voluntários.
Como resultado, verificou-se que os voluntários que consumiram a solução de eritritol apresentaram níveis circulantes deste álcool 1.000 vezes maiores em comparação com os níveis pré-teste. Em contraste, o grupo que consumiu a solução de glicose apresentou uma concentração sérica semelhante aos níveis pré-teste de eritritol. Contudo, esse achado não se repetiu em relação à glicose plasmática, que apresentou um modesto aumento nos níveis circulantes (de 87 mg/dL para 127 mg/dL) neste grupo.
Nos testes in vitro de agregação plaquetária, observou-se um aumento significativo na resposta de agregação nos voluntários que ingeriram a solução de eritritol, o que não ocorreu no grupo que consumiu a solução de glicose. Outras alterações associadas à agregação de plaquetas foram identificadas no sangue do grupo que consumiu eritriol, mas não no de glicose.
Com base nesses achados, os autores concluem que a ingestão de uma quantidade típica de eritritol aumentou a reatividade plaquetária em voluntários saudáveis, levantando preocupações de que o consumo deste adoçante pode aumentar o potencial de trombose. Combinando os achados deste estudo com pesquisas observacionais clínicas em larga escala recentes e estudos que investigaram o mecanismo em modelos celulares e animais, os pesquisadores sugerem que a discussão sobre a necessidade de reavaliar a designação de “Geralmente Reconhecido como Seguro” (GRAS) dada ao eritritol como aditivo alimentar é justificada.
A designação GRAS pode ser concedida a ingredientes alimentares de duas formas: por meio da avaliação de especialistas qualificados, que devem demonstrar a segurança do produto nas condições de uso pretendido, ou para substâncias utilizadas em alimentos antes de 1958, com base em experiência comprovada de uso comum.
O estudo avança em pelo menos dois aspectos em relação aos antecessores. Primeiro, ao utilizar voluntários saudáveis, mitiga a possibilidade de causalidade reversa. Os níveis naturais de eritritol no corpo humano podem estar elevados em casos de doenças cardiovasculares, estresse oxidativo e outros problemas de saúde. Segundo, a coleta de sangue dos voluntários em jejum e após a intervenção permitiu determinar que os achados eram decorrentes da solução ingerida, e não de um consumo de outros alimentos.
Dito isso, é importante notar que o estudo apresentou uma limitação significativa: o tamanho da amostra. Embora os resultados tenham sido estatisticamente significativos, o envolvimento de apenas 10 voluntários por grupo indica uma amostra pequena, o que impede a generalização dos achados para a população em geral. Isso ressalta a necessidade de replicar o estudo em futuras pesquisas para corroborar – ou não – os dados encontrados.
Ademais, apesar de reconhecer que um ensaio clínico randomizado (RCT) possa ser extremamente caro, acredito que os pesquisadores poderiam, ao menos, ter randomizado os voluntários, em vez de “escolher” quem receberia a solução de eritritol ou glicose. A falta de uma explicação clara sobre o critério utilizado para a escolha dos participantes para cada grupo abre a possibilidade de fatores residuais de confusão.
Se isso não fosse suficiente, a dose administrada de 30 g, ingerida de uma vez só pelos participantes, não é algo tão comum – pelo menos aqui no Brasil. Por exemplo, um sorvete sabor morango sem açúcar da marca LowKo indica em sua tabela nutricional que uma porção de 60 g (1 bola) contém 6,2 g de polióis, como os álcoois adoçantes são chamados. Embora não especifiquem a quantidade de xilitol e eritritol, para fins de argumentação, vamos supor que todo o conteúdo seja de eritritol.
Isso significa que, para atingir a dose utilizada no estudo, seria necessário consumir 290 g de sorvete – algo possível, mas não muito aconselhável, tanto para essa marca quanto para outras que utilizam açúcar em vez de polióis. Para efeito de comparação, 290 g de sorvete de creme da Kibon contêm 62,8 g de açúcar.
Por fim, é importante destacar que o aumento da responsividade plaquetária é um componente necessário, mas insuficiente para a formação de trombos. Além disso, esse efeito foi observado em estudos in vitro, não sendo possível assegurar que ele também ocorra no organismo humano.
O problema dos unicêntricos
Algo que não comentei anteriormente é que a pesquisa citada foi unicêntrica. Para aqueles que não estão familiarizados, estudos unicêntricos são pesquisas realizadas em uma única instituição. Eles tendem a ser mais baratos, apresentam maior facilidade logística e permitem uma coleta de dados mais simples. Além disso, costumam utilizar uma população menos heterogênea, o que reduz as variáveis de confusão.
Esses estudos são geralmente usados para testar intervenções em cuidados críticos. No entanto, embora apresentem essas vantagens e sejam valiosos para a geração de hipóteses, na maioria dos casos os estudos unicêntricos servem como ponto de partida para a realização de ensaios mais robustos e com maior poder investigativo, em vez de fornecerem uma resposta definitiva para o que está sendo investigado
Apesar de ser um trabalho focado em cuidados críticos e das minhas ressalvas sobre revisões narrativas, uma boa introdução ao tema pode ser encontrada no artigo do professor Rinaldo Bellomo. Nele, os autores discutem situações em que estudos unicêntricos obtiveram resultados positivos sobre uma intervenção, desmentidos depois em trabalhos mais amplos.
Para exemplificar, os autores destacam uma reviravolta ocorrida no campo do cuidado de pacientes críticos, devido a duas pesquisas.
Primeiro, um estudo unicêntrico, controlado e randomizado publicado em 2001, no qual adultos admitidos em uma unidade de terapia intensiva cirúrgica (SICU, sigla em inglês) e que estavam recebendo ventilação mecânica foram randomizados para um grupo que recebeu terapia intensiva com insulina (manutenção da glicose no sangue em um nível entre 80 e 110 mg por decilitro) ou para um grupo que recebeu tratamento convencional (infusão de insulina apenas no caso de uma glicemia que excedesse 215 mg por decilitro, com manutenção dos níveis entre 180 e 200 mg por decilitro).
Após 12 meses, com um total de 1.548 pacientes, verificou-se que 35 pacientes (4,6%) morreram no grupo de terapia intensiva, enquanto o grupo de tratamento convencional apresentou 63 mortes (8%). O possível efeito benéfico da terapia intensiva com insulina no desfecho de mortalidade foi observado entre os pacientes que permaneceram no SICU por mais de cinco dias.
Além disso, constatou-se que a intervenção também reduzira a mortalidade hospitalar geral em 34%; as infecções na corrente sanguínea em 46%, além de outros impactos positivos nas estatísticas do hospital.
Com base nisso, os autores concluíram que a terapia intensiva com insulina reduz a mortalidade e as complicações entre pacientes críticos na unidade de cuidados intensivos. Os resultados foram considerados uma revolução na forma de tratar pacientes críticos e logo foram implementados como uma terapia importante para diminuir a mortalidade.
Oito anos depois, outro grupo de pesquisadores decidiu verificar se os achados iniciais eram sólidos. Essa investigação foi conduzida através do NICE-SUGAR Study. A pesquisa contou com 6.104 pacientes, sendo que 3.054 foram alocados no grupo de controle intensivo e 3.050 no grupo de controle convencional. Contudo, devido à perda de acompanhamento e ao consentimento negado para o uso de dados de alguns pacientes, a análise final contou com 3.010 e 3.012 pacientes, respectivamente.
Como resultado, verificou-se que, dos 3.010 pacientes do grupo intensivo, 829 morreram (27,5%), enquanto, no grupo de controle convencional, dos 3.012 pacientes, 751 morreram (24,9%). Análise estatística indicou 14% mais chances de morte no grupo intensivo.
Isso demonstra que até mesmo pesquisas aparentemente sólidas, mas que ainda não foram replicadas, podem apresentar resultados não condizentes com a realidade.
Embora a conclusão de Bellomo, R. seja relacionada à área de cuidado crítico, acredito que suas palavras podem ser aplicadas a outras áreas, inclusive aos achados recentes sobre o eritritol:
“Devemos ser cautelosos ao considerar ensaios unicêntricos como uma demonstração de uma verdade biológica e evitar dar-lhes peso ou valor indevido, ainda mais quando tais estudos não são cegos. Especialmente à luz da descoberta pelo NICE-SUGAR de que uma intervenção previamente recomendada não foi apenas ineficaz, mas também ativamente prejudicial, mudar a prática ou emitir recomendações fortes com base em ensaios unicêntricos parece prematuro e imprudente. Esses passos só devem ser tomados após confirmação em ensaios multicêntricos, randomizados, controlados, com poder adequado, robustos, supervisionados e monitorados de forma independente”.
O que fazer?
Compreendo que o estudo de Witkowski realmente conseguiu adicionar novas evidências sobre os possíveis impactos dos polióis – especificamente do eritritol. No entanto, isso não significa que a posição defendida por ele ou por seus colaboradores esteja correta. É importante reiterar que ainda não temos uma conclusão definitiva sobre os reais riscos desses adoçantes para a saúde humana, ou mesmo se tais riscos existem. Nessa situação, acredito que o mais correto é adotar uma abordagem cautelosa – mas não neurótica –, ou seja, evitar consumir 30 g de eritritol com água, ou comer 300 g de sorvete de uma vez.
Como apresentado na conclusão de Chuck Dinerstein, diretor médico do American Council on Science and Health (ACSH), em seu artigo intitulado “Sweeteners or Silent Killers? The Not-So-Sweet Truth About Xylitol and Erythritol”:
“O xilitol e o eritritol podem aumentar ligeiramente o risco cardiovascular. No entanto, para pessoas com diabetes, a substituição do açúcar por um adoçante menos calórico pode ser uma troca vantajosa, já que os riscos associados ao consumo desses adoçantes são compensados pela ausência de ganho de peso. Embora o xilitol e o eritritol possam não ser mais considerados tão inofensivos quanto se acreditava antes, não devemos descartá-los precipitadamente. Talvez o verdadeiro problema não seja aquela guloseima ocasional que se apresenta como amiga da dieta, mas sim a suposição de que ‘sem culpa’ — uma expressão frequentemente associada a inúmeros produtos — signifique ‘sem consequências’. A moderação, como sempre, é o ponto de equilíbrio, e, infelizmente, é a primeira a ser esquecida”.
Acredito que essa abordagem pode servir como uma boa orientação até que novos estudos, com metodologias mais rigorosas, esclareçam se os efeitos prejudiciais são reais, ou se resultam de associações indevidas.
* Mauro Proença é nutricionista e colaborador da Revista Questão de Ciência, do Instituto Questão de Ciência, onde este artigo foi publicado originalmente