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Entre a Aids e a Covid-19

Talvez seja cedo para dizer como a pandemia afetará definitivamente o planeta, mas mudará a história da humanidade de modo mais importante do que o HIV

Por Paul Volberding*
11 jun 2021, 06h00

Sem dúvida existem similaridades entre a epidemia de HIV ocorrida nos Estados Unidos quatro décadas atrás e a atual pandemia da Covid-19 – mas há também diferenças muito grandes. As doenças são bem distintas entre si: HIV, sem tratamento, mata todos os pacientes; o coronavírus mata, aparentemente, entre 1% e 3% dos infectados. O novo vírus é bem menos letal, porém muito mais contagioso.

Em comparação com o número de pessoas que contraíram HIV, a quantidade de indivíduos com coronavírus é uma explosão. Trata-se de uma doença muito mais transmissível e provocada quase imediatamente após a infecção, enquanto o HIV pode levar quase dez anos para adoecer o paciente. Durante esse período, a pessoa pode transmitir o vírus, no entanto só por contato sexual ou sanguíneo, não através de superfícies ou fluidos.

A principal diferença na forma como enfrentávamos epidemias quarenta anos atrás e o modo como as enfrentamos agora é que, no fim dos anos 1980, a tecnologia era muito inferior à atual. Nós levamos de três a quatro hivanos apenas para encontrar o vírus causador da Aids. O sequenciamento genético do HIV levou aproximadamente duas décadas. Já na pandemia da Covid-19, o vírus foi encontrado em uma ou duas semanas, sequenciado em pouquíssimo tempo. O ritmo da ciência e as ferramentas das quais os cientistas dispõem são muitíssimo melhores do que aquelas que possuíamos na luta contra o HIV.

O maior problema, na minha opinião, é que não aprendemos lição alguma quanto à importância da realização de testes rápidos nas porções da população que mais necessitam deles. Assim que criamos o exame de HIV, começamos a fazer testes muito rápidos e precisos. Escolhíamos grupos aleatórios da população e analisávamos seu sangue. Descobrimos com muita acurácia a porcentagem de portadores de HIV pelo país. Com o coronavírus, ainda não temos esses dados, embora a nossa tecnologia tenha evoluído imensamente. O modo como nós lançamos mão dela é horroroso.

Mas é preciso dizer que a tecnologia tem seus limites. A história humana nos diz que haverá outras pandemias. Só me resta esperar que a próxima seja parecida com a atual. Se for o caso, estaremos prontos.

Ainda assim, não acho que a forma como enfrentamos epidemias no âmbito individual tenha mudado muito. Nós sempre temos que nos adequar à doença contra qual estamos batalhando. A resposta adequada ao HIV seria não fazer sexo desprotegido ou não injetar drogas. Muitas pessoas evitaram esses comportamentos na epidemia dos anos 1980 como meio de não contrair o HIV. Por sua vez, a disseminação do novo coronavírus é tão fácil e rápida que o único modo de evitá-lo é se escondendo dele.

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Globalmente, estamos nos escondendo – embora, até onde eu saiba, o Brasil não esteja unido nesse esforço. Eu mesmo estou escondido na minha casa. Nós estamos sob ordens para tanto, e isso parece funcionar.

Aqui em São Francisco, onde vivo, as medidas de saúde pública parecem estar dando resultado. É claro, entretanto, que se trata de um desastre, de uma crise mundial. Não podemos sair de casa, a indústria está em colapso mundo afora. Isso nunca aconteceu antes. Em comparação com o cenário atual, o impacto econômico do HIV foi mínimo.

Não sabemos se o novo coronavírus sumirá, como a primeira epidemia de SARS sumiu. Há quem diga que ele voltará no outono (dos EUA). Não
sabemos se será possível criar uma vacina. É muito cedo para dizer como essa pandemia afetará o planeta, contudo não há dúvida alguma de que ela mudará a história da humanidade – e de um modo muito mais importante do que o HIV. O vírus da Covid-19 está matando milhares de pessoas, destruindo economias, forçando milhões a se esconderem, forçando os esportes, a música e demais artes acabarem. Acredito que a repercussão disso poderá durar gerações. Sinto pena da geração dos meus filhos.

Ainda não sei se a ciência sairá dessa pandemia mais forte. Caso criemos uma vacina eficiente em breve, ela será triunfante. Afinal, foi graças à ciência que encontramos o vírus e, nessa hipótese, a cura. Mas, repito, é cedo para dizer. Estou de dedos cruzados.

Os cientistas que encabeçarem a luta contra o novo coronavírus serão muito mais renomados no futuro do que eu sou atualmente. Não há dúvida. Espero estar aqui para ver a descoberta da vacina, e espero que ela atraia toda a atenção que merece. Será algo notável. O mundo é muito diferente.

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No futuro, nos prepararmos para um vírus parecido com o atual seria fácil: precisaríamos de testes rápidos, formas velozes de criar vacinas, meios mais práticos para declarar quarentenas e evitar o contato com os outros. Essas são as lições principais do atual coronavírus.

Todavia, nunca sabemos como será o próximo vírus. Acredito que, em geral, a nossa tecnologia é robusta o suficiente para que respondamos
com eficiência à maioria das coisas que conseguimos imaginar. No entanto, ninguém imaginou uma epidemia como a do HIV. Era um vírus completamente desconhecido. Não podemos esquecer que nada na nossa história nos uniu tanto quanto a pandemia do coronavírus. Trata-se de um desastre; só que estamos conversando mais. Pessoas da Terra inteira têm os mesmos medos.

Espero que consigamos controlar a situação – mas, para isso, precisamos refletir muito sobre as lições que o novo coronavírus nos deixou, assim que tivermos tudo em ordem.

*Oncologista americano que se tornou conhecido por ser um dos líderes da luta contra o HIV na década de 1980 (e nas subsequentes). Hoje, trabalha como professor da Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), onde dirige o instituto de pesquisas sobre Aids.

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