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Droga que adia o envelhecimento entra em fase de testes em humanos

Há, em todo mundo, pelo menos 2.000 estudos sobre a rapamicina. Mas para que viver mais se não frearmos as doenças da idade?

Por Letícia Passos
Atualizado em 4 jun 2024, 16h11 - Publicado em 9 ago 2019, 07h00
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  • O clássico As Viagens de Gulliver, escrito em 1726 pelo irlandês Jonathan Swift (1667-1745), é imediatamente relacionado aos minúsculos moradores de Lilliput, pessoinhas de 15 centímetros de altura — menos conhecidos são os struldbrugs, os imortais habitantes do reino de Luggnagg, levados ao exílio dentro da própria terra justamente por viverem para sempre. O que seria o sonho dos sonhos, a eternidade, constata o médico Lemuel Gulliver, transforma-se em drama. Anota ele ao descrever o difícil cotidiano dos struldbrugs: “O modo de vida em que você pensou é insensato, já que supõe que juventude, saúde e vigor duram para sempre: ninguém é tolo o bastante para contar com isso. Se é assim, como passar uma vida eterna com todas as desvantagens que a velhice traz consigo? Entretanto, todos parecem desejar adiar a morte, por mais tarde que ela venha. É raro ouvir dizer que alguém desejou morrer, a menos que estivesse no auge da dor ou da tortura”.

    Ao completarem 80 anos, os struld­brugs perdem os direitos legais. Seus herdeiros tomam posse de seus bens, restando-lhes apenas uma pequena pensão para o sustento. São considerados incapazes de exercer cargo de confiança ou atividade lucrativa. Aos 90, perdem dentes e cabelos; não distinguem mais o sabor das coisas. Aos 200 anos, como a língua do país muda constantemente, os struld­brugs de uma época já não entendem os de outra. Para que, enfim, a imortalidade se ela pode ser apenas o prolongamento de uma vida angustiante? E, no entanto, nós, seres humanos, sempre sonhamos com o elixir da juventude das figuras de Gulliver — desdenhando, tal como no folhetim do século XVIII, dos problemas derivados de uma hipotética imortalidade.

    O elixir da hora é a rapamicina, um imunodepressor comumente utilizado contra o processo de rejeição a órgãos transplantados e que se mostrou eficiente no bloqueio de uma enzima que acelera a divisão celular, atalho para o envelhecimento. A rapamicina foi descoberta acidentalmente nos anos 1970, na Ilha de Páscoa, ao verificar-­se que evitava casos de tétano em quem andava descalço, apesar das perfurações nos pés — seu nome deriva da denominação aborígine do território chileno, Rapa Nui. Constatou-­se, em camundongos, um aumento de até 38% na expectativa de vida. A novidade: a substância entra agora na fase de testes clínicos com mulheres e homens. Há, em todo o mundo, pelo menos 2 000 estudos simultâneos em torno do medicamento, com o envolvimento das grandes companhias farmacêuticas. Talvez seja a mais fascinante corrida médica da atualidade. Imagina-se que a rapamicina possa reduzir o ritmo do crescimento de alguns tipos de câncer e frear distúrbios neurodegenerativos, como o Alzheimer. Ela parece ter um efeito semelhante ao de uma dieta de redução calórica, que já se provou eficaz no aumento da expectativa de vida. A rapamicina atua numa proteína chamada mTOR, que controla parte das respostas do metabolismo a situações de stress. O acúmulo de resíduos e proteínas defeituosas nas células cresce ao longo do tempo e estimula o envelhecimento. A rapamicina age nessa estrutura “defeituosa”. Funciona como um disjuntor, que liga e desliga o mecanismo, embora carregue efeitos colaterais relevantes. “O complicado é encontrar a dosagem ideal”, diz o geneticista Hugo Aguilaniu, presidente do Instituto Serrapilheira. “Uma dose menor não dá resultado, e uma dose muito alta pode desencadear efeitos colaterais graves, incluindo dificuldade de cicatrização, pneumonia, maior vulnerabilidade a infecções bacterianas e câncer. É uma troca muito desvantajosa para alcançar a longevidade.”

    ILHA-DE-PASCOA
    ORIGEM – Ilha de Páscoa: o nome do composto é derivado da denominação aborígine do lugar, Rapa Nui, onde foi descoberto (Mlenny/Getty Images)

    Vivemos cada vez mais, e desejamos ainda mais tempo — em 1960, a expectativa de vida no mundo era de 52 anos; hoje é de 72. No Brasil, o salto foi de 54 anos, há seis décadas, para 75 anos. A humanidade ganhou longevidade e, ao que tudo indica, conquistará ainda mais fôlego com compostos como a rapamicina. Mas há um dilema, interessante demais para ser abandonado: de que valerá viver tanto quanto um struldbrug, ansiar pela condição de um personagem como Peter Pan, a inesquecível criação do britânico J.M. Barrie (1860-1937), que não cresce e permanece atrelado à mágica e à ingenuidade da infância, sem problemas de saúde e da mente, se formos incapazes de controlar as doenças do envelhecimento? Trata-se de uma corrida que traz embutida esperança — a esperança de que, adiando o relógio da morte, seja possível descobrir a cura de alguns males mortais, especialmente os associados ao câncer e à falência do coração. Diz o gerontologista britânico Aubrey de Grey, para quem, numa conhecida provocação, o ser humano que terá 1 000 anos já nasceu, está vivíssimo entre nós: “Nosso corpo será tratado pela medicina como a engenharia lida com uma máquina — danificou, reparou”.

    Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647

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