Morador de Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, B.A. cultiva desde 2016 cinco pés de maconha no quintal de sua casa. Das plantas, extrai flores da Cannabis sativa que são enviadas a um laboratório da UFRJ. O local conta com autorização judicial para produzir, com base nessa matéria-prima, um óleo capaz de aliviar espasmos e convulsões em pacientes como a filha de 4 anos de B.A., que nasceu com microcefalia. Em julho, ele entrou com um habeas-corpus para legalizar a plantação doméstica. “Não quero continuar na clandestinidade, pois não estou fazendo nada de errado”, afirma. “Há remédios importados para tratar os mesmos sintomas, mas eles custam muito caro.”
Quem defende a família é o advogado Emílio Figueiredo, de 41 anos, considerado a maior autoridade do país em casos que envolvem a liberação do cultivo da erva para fins medicinais. A atuação no “direito canábico” é voluntária e conduzida em paralelo com as suas atividades profissionais em um escritório do Rio. Ele diz ter se interessado pelo assunto em 2008, após passar a lua de mel em Amsterdã, na Holanda, onde a erva é legalizada. De volta ao Brasil, envolveu-se na organização da Marcha da Maconha e começou a usar sua expertise para dar conselhos jurídicos a pessoas que participavam de um fórum on-line sobre a Cannabis e enfrentavam questões legais. Na época, era comum cidadãos serem acusados de tráfico internacional ao tentar importar sementes de maconha. A primeira vez que Figueiredo assumiu um processo foi em 2012, quando recebeu a ligação de uma mãe desesperada porque seu filho estava preso preventivamente havia oitenta dias, no interior de São Paulo, em razão de manter quatro pequenas mudas da planta em casa.
Com mais de uma década de atuação na área, Figueiredo esteve diretamente envolvido em dezenove dos 38 processos em que a Justiça concedeu habeas-corpus para liberar o plantio doméstico a pessoas físicas para a produção de remédios. Também foi o autor da peça jurídica que garantiu a liberação do cultivo à Abrace. Sediada em João Pessoa, na Paraíba, ela é a única entidade no país que pode cultivar a planta. Em sua sede, comercializa medicamentos a preços acessíveis a mais de 700 pacientes. Tantas vitórias foram obtidas, segundo o advogado, utilizando-se evidências científicas nos julgamentos. “O cerne da estratégia é o direito fundamental à saúde, amparado por acompanhamento médico que demonstra a melhora do paciente”, diz. Para expandir a capacidade de atuação, Figueiredo fundou em 2015, junto com colegas, o coletivo Reforma, que reúne 21 advogados espalhados em oito estados. Todos trabalham voluntariamente em casos concretos ou prestando consultoria jurídica informal.
A liberação do plantio para fins medicinais está em debate no governo federal. O presidente da Anvisa, William Dib, lançou duas consultas públicas, válidas até o dia 19 deste mês, para discutir a regulamentação do cultivo controlado para essa finalidade e o registro dos remédios com princípios ativos da maconha. O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) se posicionaram contrários à medida. O ministro da Cidadania, Osmar Terra, afirmou que a liberação seria a porta de entrada para legalizar drogas no país. Em sintonia com o ministro, Jair Bolsonaro fez declarações contrárias ao projeto e até ameaçou tirar Dib da presidência da Anvisa. Na agência, houve um crescimento de 700% desde 2015 nas solicitações para importação de medicamentos à base do canabidiol. No exterior, países como EUA, Canadá, Uruguai, Portugal e Israel já regulamentaram o uso medicinal.
Para Figueiredo, as propriedades médicas da erva ficaram evidentes quando um familiar próximo padecia de um câncer no estômago. O parente, já sem apetite em razão das cirurgias e convivendo com os efeitos colaterais da rádio e da quimioterapia, recebeu orientação do médico para usar maconha. A droga foi fornecida pelo próprio Figueiredo, que já a consumia desde adolescente, quando surfava na Praia de Itacoatiara, em Niterói. Figueiredo diz fazer uso diariamente da Cannabis até hoje e garante que nunca fumou um baseado antes de trabalhar. “A maconha já está liberada no Brasil. Qualquer pessoa, inclusive menores de idade, pode ter acesso a ela. O que nós estamos pedindo é controle”, defende. Para o Doutor Cannabis, portanto, falta apenas um “tapinha” na lei.
Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647