Quando se afundava nas profundezas de suas sucessivas crises, o pintor Vincent van Gogh (1853-1890), dono das primorosas pinceladas nervosas que o fariam único, era tachado de louco. Em um dos célebres episódios de sua trajetória atormentada, ele decepou a orelha esquerda, um prenúncio do que viria meses mais tarde: um tiro no próprio peito, do qual morreria aos 37 anos. À luz do conhecimento acumulado desde então, o gênio holandês sofria de bipolaridade, depressão e síndrome de borderline, série de distúrbios potencializados pelo alcoolismo que o levou ao manicômio. Do longínquo século XIX para cá, o que era visto como expressão de insanidade ganhou, sob o impulso da ciência, nome, classificação e tratamento nos manuais da psiquiatria moderna. Mesmo assim, o assunto ficava trancafiado nos consultórios, envolto em sombra, um daqueles tabus difíceis de remexer. Pois cada vez mais gente vem deixando a vergonha e o medo de falar de seus transtornos, desencadeando-se daí um ciclo virtuoso. “Quando alguém se expõe, ajuda os outros ao mostrar que as vulnerabilidades são inerentes ao ser humano”, explica o psicólogo e psicanalista Lucio Costa.
A saída do armário, por assim dizer, das doenças psiquiátricas se reflete em indicadores que ajudam a dar a temperatura do comportamento em sociedade. Segundo um recente levantamento do Twitter, percebeu-se entre os brasileiros um aumento de 39% no volume de conversas sobre saúde mental nos últimos dois anos, uma subida considerável. Nunca se caçou tanta informação acerca dos males da cabeça quanto neste frenético 2021, de acordo com o Google. A pandemia, que impactou a saúde mental de porções relevantes da população mundial, pôs fermento no debate. “O confinamento sacudiu os alicerces e reforçou como nunca a necessidade de falar e cuidar da mente”, avalia Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.
O fato de celebridades procurarem a cada dia mais os holofotes para tratar de depressão, ansiedade e outros males contribui para que gente comum traga à luz suas dores e angústias nesse terreno árido. A cantora Adele rompeu o silêncio quando revelou ter enfrentado depressão pós-parto e a favoritíssima ginasta americana Simone Biles parou a Olimpíada de Tóquio ao anunciar que jogaria a toalha — acabou participando de apenas uma competição nos Jogos. “Temos de proteger nossa mente e nosso corpo, e não sair só fazendo o que o mundo quer que façamos”, declarou Biles, resoluta. Antes dela, o gigante das piscinas Michael Phelps já havia contado ao mundo que duela com uma depressão. A lista nacional abrange a atriz Bruna Marquezine, a cantora Luisa Sonza, a ex-estrela da novela Verdades Secretas Camila Queiroz e o sambista Zeca Pagodinho, que, agora com a depressão sob controle, chegou a revelar: “A pior parte era levantar da cama”.
Especialistas enxergam nas sociedades de hoje, mais refratárias ao preconceito, um ambiente favorável à exposição das diferenças. Nesse caldo, os sofredores dos males da cabeça se sentem menos tolhidos ao sair de seus esconderijos, ainda que esbarrem com alguma intolerância. Ela tem até nome: psicofobia. O chef paulista Jefferson Rueda, dono do restaurante Casa do Porco, eleito o 17º melhor do planeta no ranking World’s 50 Best, venceu a barreira do medo e decidiu contar que teve depressão e sintomas de burnout na pandemia, quando só conseguia pescar. A letargia o sugou e ele quis se manifestar: “Além da ajuda de um profissional, acho importante falar da doença”, diz Rueda a VEJA. O apresentador Pedro Bial, que sucumbiu a uma depressão muito antes e já mergulhou em crises de ansiedade, relata: “No início, não saí alardeando aos quatro ventos, mas hoje defendo a importância de tratar abertamente o problema para naturalizá-lo”.
É verdade que muita gente dá de cara com a muralha do preconceito ao enveredar pela transparência, mas mesmo o mercado de trabalho, antes pouco atento à questão, começa a adotar práticas que miram o bem-estar físico e psicológico — especialmente agora, com os sacolejos pandêmicos. Em 2020, a Ambev criou uma diretoria de saúde mental, que inclui uma equipe de psiquiatria disponível 24 horas por dia. A empresa é uma das signatárias de um movimento encabeçado pela ONU no Brasil que justamente estimula a adoção de políticas em benefício da mente. “Pouco tempo atrás, o funcionário tinha pavor de ser demitido ao assumir seus problemas e ser visto como frágil, uma cultura que está mudando”, observa a consultora de recursos humanos Sofia Esteves. Um estudo global da consultoria Happiness Business School com a startup Reconnect revela que quatro em cada dez pessoas se sentem à vontade para abrir a caixa-preta das doenças mentais para seus chefes. “Nunca precisei esconder em meus trabalhos as questões mentais que enfrento desde a adolescência”, afirma a diretora de arte Luiza Oliveira, 23 anos, que discorre sem freios sobre suas crises de depressão e ansiedade. “Isso é muito mais natural na minha geração”, ressalta.
Abordados por grandes pensadores no curso da história, de Platão (428 a.C.-347 a.C.) a Freud (1856-1939), os transtornos da mente são tão antigos quanto a própria humanidade. Durante séculos, porém, os “esquisitos” eram alijados do convívio social. A identificação da doença e seu tratamento, à base de terapia e remédios, são fatores que estão ajudando a desmistificar as patologias psiquiátricas — um campo em franco avanço. Há cinquenta anos, havia trinta doenças catalogadas; agora são 99. A cultura manicomial, que perdurou no Brasil até o fim dos anos 1990, quando 80% dos recursos do governo direcionados para o escaninho da saúde mental iam para hospitais psiquiátricos, cede espaço a tratamentos bem mais humanizados. “A ciência aliada à evolução da sociedade está afastando a vergonha e aliviando as dores”, arremata a psicóloga Lidia Aratangy, da Universidade de São Paulo. De degrau em degrau, a lucidez impera.
GÊNIOS INCOMPREENDIDOS
À luz da ciência moderna, sabe-se hoje os males que os atormentavam
Michelangelo (1475-1564)
Expoente do Renascimento italiano, o autor do afresco que adorna o teto da Capela Sistina sofria de transtorno obsessivo-compulsivo e síndrome de Asperger
Beethoven (1770-1827)
Conhecido não só por suas composições magistrais como por seus ataques de fúria e oscilações de humor, o músico alemão apresentava traços de bipolaridade
Van Gogh (1853-1890)
O holandês das pinceladas cheias de vivacidade teve uma trajetória marcada por surtos, com sinais de bipolaridade e transtorno borderline, que culminaram em seu suicídio
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768