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Coronavírus: a busca pelo paciente zero

A ciência começa a desvendar o início das infecções pelo mundo — informação crucial para o controle da pandemia

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h25 - Publicado em 29 Maio 2020, 06h00
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  • Mudar radicalmente os hábitos de uma população e desenvolver um tratamento eficaz em tempo recorde — o que implica lançar-se à busca inclemente pela vacina — estão entre os grandes desafios na contenção de toda nova pandemia. Há uma terceira ferramenta, contudo, pouco alardeada, mas que mobiliza cientistas globalmente: rastrear o início da transmissão pelo chamado “paciente zero”, termo usado para descrever o primeiro humano infectado por determinada doença viral ou bacteriana. Identificá-lo é atalho para a compreensão de como e quando o contágio aconteceu. “Chegar à origem exata da disseminação nos permite conhecer a real força de um vírus”, diz o epidemiologista Bruno Scarpellini, pesquisador da PUC do Rio de Janeiro. As atenções, hoje, estão voltadas para Wuhan, cidade da província de Hubei, na China, o suposto epicentro do novo coronavírus, logo depois do Natal de 2019. Mais especificamente, olha-se para o bagunçado mercado de animais vivos, hoje fechado por agentes de vigilância sanitária — de onde teria vindo o vírus, passado de um hospedeiro natural, o morcego, para um pangolim, mamífero que vive em zonas tropicais da Ásia e África, até pousar em um humano.

    Typhoid Mary in Hospital Bed
    Mary Mallon (Bettmann Archive/Getty Images)

    SOLIDÃO
    Mary Mallon (1869-1938): a cozinheira irlandesa que ficou conhecida como “Mary Tifoide” foi condenada pela sociedade por ter transmitido a doença para cinquenta pessoas, mesmo sem sintomas. Ela morreria 23 anos depois de ser posta em quarentena, ainda totalmente apartada do cotidiano

    Essa é a tese mais aceita, embora Donald Trump, ridiculamente avesso à ciência, espalhe uma informação torta: de que o microrganismo teria sido criado nas bancadas de laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan. O governo de Xi Jinping, em guerra particular com os Estados Unidos, retruca: o Sars-CoV-2 pode ter desembarcado no Oriente levado por soldados americanos durante os Jogos Militares, que a cidade recebeu em outubro de 2019. É briga que vai longe, e que só atrapalha o rastreamento do começo da história. No resto do mundo, há velocidade. Na última semana, a Alemanha, país com mais de 8 000 mortes em decorrência da Covid-19, mas com ampla estrutura de saúde hospitalar e testes em profusão, apresentou os primeiros — e fascinantes — resultados da investigação sobre o momento inaugural do surto no país. A paciente zero trabalha para uma empresa de peças automotivas em Xangai, na China. Ela viajou de Xangai para Munique em 19 de janeiro. Ao chegar à Alemanha, sentiu dores no peito e na coluna e tomou um paracetamol. Teve fadiga durante a estada no país e febre quando voltou para Xangai. No dia 26, já na China, testou positivo. Todos — todos! — que conviveram com ela até então foram monitorados na Alemanha, dos colegas de profissão aos funcionários do hotel onde se hospedou e os taxistas que a transportaram. Ela infectou dezesseis pessoas no país. Algumas delas durante reuniões de trabalho, outra por terem dividido o mesmo computador e outra ainda por ter compartilhado o saleiro, na cantina da empresa.

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    No Brasil, a história oficial da pandemia começou em 25 de fevereiro, quando um homem de 61 anos se tornou o primeiro a receber o diagnóstico positivo para Covid -19, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ele havia chegado, cinco dias antes, de uma viagem de negócios à região da Lombardia, no norte da Itália. Ao deixar o aeroporto, passou no escritório e foi para casa, no bairro de Santo Amaro, na Zona Sul. No sábado 22, participou de um almoço na residência de um dos filhos com cerca de trinta pessoas, entre amigos e parentes. A família, de descendentes de italianos, se abraçou e se beijou fartamente. Os primeiros sintomas da doença surgiram no dia 23 — dor de garganta, febre baixa, dores musculares, tosse seca e coriza. A persistência dos sinais fez com que desconfiasse que poderia estar infectado com a doença que assolava a Itália. No dia 24 à noite, ele foi ao pronto-socorro, acompanhado da mulher. Os sintomas e o histórico de viagem ao exterior fizeram a equipe médica suspeitar rapidamente de que pudesse estar diante do primeiro caso da nova infecção. O Einstein até então havia feito cerca de trinta exames para Covid-19 em pessoas com situação semelhante, todos negativos. O resultado só seria confirmado no dia seguinte, mas o futuro paciente zero foi encaminhado para casa com a recomendação de isolamento total, com máscaras cirúrgicas e instruções de segurança para evitar contágios no trajeto e dentro de sua residência. O homem levou consigo uma minuciosa apostila com orientações de cautela e proteção.

    CORONAVIRUS-COVID 19-HOSPITAL ALBERT EINSTEIN-EGBERTO NOGUEIRA-2020-1 (45).jpg
    Fernando Gatti (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/VEJA)
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    O MÉDICO NÚMERO 1
    Fernando Gatti, infectologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: o médico agiu rápido ao identificar os sintomas de Covid-19 no primeiro paciente a receber diagnóstico positivo para a doença no Brasil. Ele acompanhou a angústia do infectado com mensagens pelo smartphone

    O comunicado positivo para a enfermidade foi feito pelo infectologista Fernando Gatti, por telefone. Ao longo de duas semanas, Gatti trocou mensagens remotamente com o doente ao menos quatro vezes por dia. “Ele teve uma postura tão ou mais relevante que a do hospital porque podia simplesmente não ter procurado um diagnóstico da doença já que os sintomas eram leves”, diz Gatti. Ao menos três pessoas do almoço em família foram infectadas, mas o rastreamento não seguiu muito além. O paciente zero sofreu pressões psicológicas. “Ele ficou mal ao ouvir diversas notícias em que era acusado de ser o responsável pela disseminação da doença”, conta Gatti. O medo da exposição fez com que o empresário evitasse ser identificado publicamente, com receio do rótulo que lhe seria colado. Ressalve-se que, com olhar retroativo, pode não ter sido ele o ponto de partida. Trabalho feito pela Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, mostrou que o novo coronavírus já circulava no Brasil na primeira semana de fevereiro, vinte dias antes do primeiro caso diagnosticado. A hipótese foi levantada com base no aumento de mortes de pessoas hospitalizadas com graves sintomas respiratórios, hoje associados à infecção.

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    O receio de mostrar a cara é compreensível. Embora sobejamente celebrada como ferramenta de saúde pública, a identificação do infectado pioneiro arrasta uma imensa indagação ética — por que a corrida pela origem, se ela pode ser sinônimo de estigma? O suposto paciente zero da epidemia de aids nos Estados Unidos, um comissário de bordo canadense, Gaëtan Dugas (1953-1984), perdeu essa dura condição há alguns anos, quando se descobriu que, a rigor, não fora ele o deflagrador de nada — era vítima, e não vetor do vírus. A exoneração de Dugas de sua triste posição histórica, do ponto de vista da medicina, foi anunciada, pelos jornalistas, por parte da liderança homossexual americana e até mesmo pela comunidade científica, como uma “absolvição”. Ele deixou, enfim, de ser “culpado”, na indevida postura de pôr a culpa no doente, e não na doença. O sequenciamento genético de amostras de sangue armazenadas desde a década de 70 revelou que a cepa que infectou Dugas havia circulado entre gays em Nova York por vários anos antes de ele desembarcar nos EUA em 1974. Portanto, embora tivesse tido centenas de parceiros sexuais em várias cidades, Dugas não apresentou o HIV para a América do Norte.

    Gaëtan Dugas (Killing Patient Zero/Fadoo)
    Gaëtan Dugas (//Reprodução)

    ESTIGMA

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    Gaëtan Dugas (1953-1984): o suposto paciente zero da epidemia de aids nos Estados Unidos, um comissário de bordo canadense, perdeu essa condição em 2016, quando um estudo mostrou que ele não fora o deflagrador pioneiro do HIV na América do Norte, mas apenas uma das vítimas do vírus

    Pôs-se o canadense na ribalta porque, nos primeiros anos da aids, no início da década de 80, houve uma caça às bruxas, hoje inaceitável. Os americanos, assustados, especialmente os preconceituosos, queriam alguém para quem apontar o dedo. Um livro citou Dugas, virou best-seller, e o naco sensacionalista da imprensa não teve dúvida em manchetar, com avidez: “Ele nos deu a aids”. A desmontagem do mito de Dugas ilumina uma questão moral: é correto localizar o primeiro caso de um surto, o paciente zero? Ele deveria ser publicamente nomeado — e difamado — como Mary Mallon (1869-1938), a cozinheira irlandesa que ficou conhecida como “Mary Tifoide” e morreu 23 anos depois de ser posta em quarentena, isolada e acusada de crime? Ou então como o médico Craig Spencer, que pegou ebola por heroísmo, na África, não infectou ninguém e ainda assim foi acusado de pôr em risco Nova York? Não, não deveriam ser expostos, é o que defendem as pessoas corretamente apegadas ao respeito pela dignidade humana. Os epidemiologistas, contudo, precisam identificar o início das epidemias e têm boa dose de razão — chegar ao zero é escudo para deter a disseminação, buscar remédios e desenvolver vacinas. Nada de estigmas. É apenas a ciência trabalhando.

    Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689

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