Um diagnóstico médico costuma ser um divisor de águas na trajetória de qualquer pessoa. Com o maior conhecimento sobre o transtorno do espectro autista (TEA), e o devido respeito que vem angariando, sair de um especialista com a notícia de que se tem a condição pode funcionar como passaporte para uma vida mais consciente e feliz. É essa a sensação de quem recebeu o diagnóstico tardio, já na idade adulta. Nada de manifestações com tom de pesar, desesperançoso. “A sensação foi libertadora”, diz a atriz Letícia Sabatella depois de descobrir ter um grau leve de autismo aos 52 anos. “Mudou minha vida”, postou no Instagram Tallulah Willis, de 30 anos, filha caçula de Bruce Willis com Demi Moore, após saber que integrava o espectro. Não se trata de celebrar um quadro clínico, muito menos de atribuir a ele uma aura inexistente, como se fosse um modismo comportamental. Trata-se, na verdade, de entender melhor as diferenças e as peculiaridades humanas — e aprender a utilizá-las ou contorná-las em prol do próprio bem-estar.
O TEA é marcado por um funcionamento atípico do cérebro, podendo afetar a comunicação, o comportamento e a socialização em vários níveis — há quem tenha comprometimentos mais brandos, outros mais expressivos. A causa foi abraçada, nos últimos meses, por personalidades que ou depararam com o diagnóstico ou decidiram compartilhar como é cuidar de um familiar com a condição. Quando pessoas admiradas por milhares de fãs mostram que o transtorno não é uma sentença nem um entrave à qualidade de vida, todos os neurodivergentes (como alguns preferem ser chamados) saem ganhando. A começar pelo combate ao preconceito e aos estigmas que ainda rondam o assunto. “Na década de 1960, as crianças com o diagnóstico eram levadas a clínicas”, diz o psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor da Faculdade de Medicina da USP. O entendimento sobre o quadro avançou significativamente, e o autismo deixou de ser visto como um obstáculo intransponível para ingressar na escola ou no mercado de trabalho, muito embora casos mais severos imponham, infelizmente, grandes limitações.
O que também avança é o número de diagnósticos pelo mundo. Nos EUA, país de estatísticas fidedignas, havia um caso para cada 10 000 crianças na década de 1970. Em 2022, o índice passou para um em cada 36. No Brasil, sem registro oficial, estima-se contingente de 4 milhões de pessoas com TEA — resultado da maior conscientização sobre o tema e do maior acesso a especialistas aptos a identificar o transtorno. “O grupo com TEA já conquista lugar de respeito, em fenômeno que lembra o que aconteceu com os portadores da síndrome de Down nos anos 1990”, diz o neurocirurgião Pedro Pierro Neto. “Antes, quem tinha Down era rotulado absurdamente de mongoloide.”
O apresentador de TV Marcos Mion, cujo filho Romeo, de 18 anos, foi diagnosticado aos 7, é um dos principais nomes a erguer a bandeira do autismo, difundindo a relevância do reconhecimento precoce e da inclusão social. No fim do ano passado, ele realizou o sonho do jovem ao levá-lo ao palco do seu programa, o Caldeirão, onde o menino dançou ao som de Elvis Presley. Hoje, o maior volume de informações sobre o universo autista é compartilhado e alimentado justamente pelos próprios pacientes e familiares.
Filósofo e dramaturgo, Henrique Vitorino, de 32 anos, é outro que, após entender sua condição, aprendeu a se relacionar melhor com o ambiente ao redor. Seu percurso de autodescoberta é narrado em Manual do Infinito: Relatos de um Autista Adulto (Editora Nova Alexandria), fruto de dois anos de pesquisas depois de receber o diagnóstico. O escritor relata que precisa levar protetores auriculares profissionais para conseguir andar de metrô, uma vez que o barulho para ele é como uma “agulha espetando os tímpanos”. E, inclusive, criou estratégias para impedir que um estímulo sonoro indesejável o lance a uma crise capaz de deixá-lo três dias trancado no quarto.
O mundo, aliás, também está mudando para acolher os autistas. “Estamos, aos poucos, tendo nossa condição respeitada”, diz Vitorino. “Até os estádios de futebol, como o do Corinthians e o do Palmeiras, já têm salas especiais, vedadas acusticamente, onde podemos assistir aos jogos.” O fato é que, dentro ou fora da bolha, os integrantes do espectro ganharam voz. No podcast Fractais, produzido por quatro neurodivergentes com diagnóstico tardio, entram em pauta temas que vão de crise de identidade a bullying. Um dos apresentadores é o psiquiatra Alexandre Valverde, de 44 anos. Não por ser especialista, mas também por ser… paciente. “Tirei as minhas algemas e agora quero soltar as das outras pessoas”, diz o médico, diagnosticado há dois anos, após o período de isolamento imposto pela covid-19. Durante a pandemia, Valverde e a família se mudaram para o interior paulista. Com a vacinação e o controle do vírus, todos voltaram a São Paulo, menos o psiquiatra, que encontrou ali sua zona de conforto.
Valverde diz ter dificuldades de interação social, sensibilidade ao excesso de luz e ruídos, além de ansiedade. Tanto que trabalha em pé o dia todo, mesmo quando atende virtualmente seus pacientes. Os conhecidos sempre o acharam “esquisito”, mas por ser superdotado. De fato, ele tem QI comprovadamente mais alto do que a maioria da população. “Conseguia esconder minhas dificuldades graças à minha capacidade cognitiva”, diz. “Só que isso invisibilizava minhas dificuldades e o diagnóstico.” Avesso às mistificações, o psiquiatra faz questão de sublinhar que mesmo sintomas sutis do autismo tendem a gerar problemas ao longo do tempo. Isso porque, ainda que disponham de altas habilidades, os autistas podem conviver com uma série de dificuldades no cotidiano. Daí a necessidade de um bom acompanhamento e suporte especializado.
As limitações — motoras, psíquicas ou sociais — são justamente o que baliza os níveis do espectro. Quando o indivíduo tem independência para tocar a vida, recebe o diagnóstico de TEA leve, ou grau 1 — caso de Sabatella e outros artistas e ativistas da causa. Mas, quando é preciso contar com cuidadores e terapeutas no dia a dia, o autismo perambula entre os níveis 2 e 3. Existem inúmeros desafios que cercam a detecção do quadro. Os pais nem sempre captam sinais de atipicidade. Tampouco existem exames de sangue ou imagem para bater o martelo. O diagnóstico é eminentemente clínico, levando em consideração uma soma de comportamentos desde a infância (veja exemplos no quadro). Ainda assim, como evidenciam relatos nas redes sociais, muitas pessoas vivem anos sem saber que estão dentro do espectro.
Quanto antes se abre a caixa do autismo, contudo, melhor. “Mesmo quando se encontra apenas um sintoma, devemos tratar o paciente precocemente para que não haja atraso no seu desenvolvimento”, afirma Polanczyk. Foi o caso do autor de livros sobre o universo autista Fernando Murilo Bonato, de 16 anos, que recebe ajuda especializada desde os 2. “O neurologista disse para estimularmos o que podíamos”, diz a mãe e professora Karine Bonato. Ainda que tenha começado a andar de bicicleta sem rodinhas aos 3 anos e conte com uma boa autonomia, o garoto só começou a falar aos 12, depois que a mãe passou a acompanhá-lo nos estudos em casa durante a pandemia. Como ele não consegue escrever, dita para ela os textos das lições e das obras que passou a publicar. “Estou conhecendo meu filho, finalmente. E ele está se realizando com essa nova via de expressão”, diz Karine. Vivam as diferenças.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890