Nos primeiros instantes, a criança briga com aquele pedaço de pano invasor que cobre a boca e o nariz. Mas logo a estranheza passa e ela se afeiçoa à máscara de modo tão tranquilo que age como se nunca tivesse vivido sem ela. Bem-vindo ao admirável mundo da adaptabilidade infantil, especialmente valioso nestes tempos de pandemia. Em muitos lares brasileiros, repete-se o roteiro que transcorre quase que diariamente sob o teto da família de Lenice Souza, mãe de Geovana, de apenas 4. “Quando vamos sair, é ela quem lembra: ‘Ei, gente, cadê a máscara?’.” Também é a garotada que, não raro, alerta os adultos de que o acessório está mal alojado na face. Esbanjando fofura e peripécias, Bernardo Feck, um mini-influenciador digital com 450 000 seguidores no Instagram, afirma, maduro para seus 4 anos de existência: “Não tem jeito. É para se proteger do bichinho que está lá fora”.
A chave para compreender a facilidade de assimilar esse tipo de hábito na primeira década de vida reside nos mecanismos do cérebro. É justamente nessa fase que se observa ali uma maior plasticidade — o que tem a ver com a capacidade de o sistema nervoso sofrer modificações e amoldar-se a distintas realidades com agilidade invejável. Afinal, padrões de comportamento ainda não estão de todo cristalizados. “A criança não tem memória anterior suficiente para ter clareza de que o uso da máscara, por exemplo, não fazia parte do dia a dia dela”, explica a neuropediatra Liubiana de Araújo, presidente do Departamento de Desenvolvimento e Crescimento da Sociedade Brasileira de Pediatria. Ela e colegas que vivem de desbravar a mente humana lembram que papais no afã de proteger seus rebentos têm um papel central: como os filhos são esponjas a absorver tudo a sua volta, o uso sem hesitação do acessório da vez é um exemplo salutar.
Embora a Organização Mundial da Saúde não obrigue a adoção da máscara em menores de 6 anos e deixe a escolha para os pais até os 12, as sociedades brasileira e americana de pediatria recomendam seu uso como parte da indumentária infantil a partir dos 2 (antes disso, o risco de sufocamento não compensa o potencial benefício). Pesquisas recentes vêm enfatizando a necessidade de cobrir o rosto das crianças, uma vez que, já está provado, elas são transmissoras do novo coronavírus. “Como costumam apresentar pouco ou nenhum sintoma, elas passam a doença adiante sem que tenhamos a chance de freá-la”, alerta Marcelo Otsuka, vice-presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo. A prevenção se dá pelo uso adequado da máscara, que deve ter o tamanho certo — de modo a evitar aquelas sobras laterais por onde o vírus sorrateiramente pode se infiltrar — e ser trocada tão logo se revele úmida, o que é muito comum entre a turma mais jovem.
Sem data ainda para o retorno presencial às aulas, as escolas estão imersas em efervescente debate sobre como assimilar o acessório em sua rotina. Todas vão adotá-lo em algum grau — a questão é definir como. A Escola Eleva, no Rio de Janeiro e em Brasília, vai exigir dos menores que tampem o rosto na entrada, na saída e ao circular nos corredores. Durante a aula, a classe será dividida em grupos que farão as atividades entre si, longe dos demais — forma de controle empregada com sucesso na Ásia e na Europa. “Embora o bem-estar das pessoas seja prioridade, a escola não é um centro cirúrgico, mas um espaço de socialização. Daí buscarmos um caminho para equilibrar as coisas”, pondera o diretor Amaral Cunha. Para abrandar o peso que naturalmente recai sobre esse pedaço obrigatório de tecido, ele pode ser colorido e enfeitado para cativar a turma que recebe logo cedo uma lição de realidade. “Minha filha brinca de combinar máscaras e roupas”, conta a analista de recursos humanos Amanda Vieira, mãe de Maria Beatriz, 4 anos. É um toque de leveza no mundo de pernas para o ar.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703