Soprou como um vento arrebatador, no fim de abril, o anúncio feito por autoridades epidemiológicas da Suíça de que crianças abaixo de 10 anos “raramente são infectadas e não transmitem o novo coronavírus”. Seria uma vitória para os avós que, depois de longo inverno, poderiam enfim rever os netos, de quem se distanciaram por imposições sanitárias. Mas não, ou #sóquenão, como escreveriam os mais jovens nas redes sociais. Outros trabalhos científicos, publicados na trilha daquele estudo pioneiro, com a notícia libertadora, baixaram o tom e estragaram um tantinho a festa que mal fora marcada. É verdade, a taxa de infecção infantil é baixíssima: no Brasil, do ponto de vista estatístico, meninos e meninas de 1 a 5 anos representam 0,1% das mortes, e de 6 a 19 anos, 0,4% (veja o quadro na pág. 68).
Saudade da vovó e do vovô
Do que você mais sente falta? Quando os pais fazem essa pergunta a Maria Luisa Pires Steinle, a Malu, de 7 anos, a resposta vem rápido como o sorriso da menina: “Dos meus avós”, a vó Lúcia e o vô Chico. “Ela convivia bastante com os dois e no início passou a ficar meio quieta, sem querer sair do quarto”, diz a mãe, Mariana. As chamadas por videoconferência, que começam logo pela manhã, e se estendem ao longo do dia, várias vezes, ajudaram a aplacar a angústia infantil — a pedido da neta.
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Clique e AssineNão há, contudo, conclusão confiável de que não sejam vetores do microrganismo. Pode ser que sejam, e seria irresponsabilidade dizer o contrário — e a Organização Mundial da Saúde (OMS), sempre cuidadosa, como deve ser, disse não haver quantidade suficiente de levantamentos para sustentar certezas absolutas. Mas uma porção de estudos circulou com avidez e tem sido usada por alguns países da Europa para autorizar uma lenta retomada escolar. Um das investigações, realizada com 31 famílias na China, Coreia do Sul, Singapura, Japão e Irã, de dezembro de 2019 a março deste ano, mostrou que os mais jovens foram responsáveis por deflagrar a infecção em menos de 10% dos casos — a título de comparação, no caso da gripe aviária o índice é de 50%. Convém, portanto, ir com calma na celebração. Diz o infectologista e pediatra Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações: “Todo cuidado é pouco porque o papel das crianças na transmissão ainda não está claro”. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos afirmou que a gurizada “ainda pode transmitir o vírus a outras pessoas de maior risco, incluindo adultos mais velhos e cidadãos com sérias condições médicas subjacentes”. E a distância entre as duas pontas da pandemia — a dos menos atingidos, no início da vida, e a dos mais frágeis, os idosos — é ainda crucial. Netos de um lado, avós do outro, por precaução, e olhos sempre atentos ao que a ciência ilumina.
Saudade dos amigos da escola
Helena Fernandes Castellana, de 7 anos, nunca foi muito companheira de equipamentos eletrônicos. A quarentena a fez ter aulas on-line (ela estuda no colégio paulistano Oswald de Andrade, permanentemente atento ao ensino a distância imposto pela pandemia) e a inventar um novo jeito de brincar: com os amigos, cada qual na sua casa. Assistem juntos a desenhos no YouTube, brincam e riem largamente. A incorporação dos aparelhos permitiu que ela e o irmão, Vinícius, de 4 anos, não ficassem chateados em comemorar o aniversário de cada um remotamente, por vídeo. “Reunimos a família pelo Zoom e foi muito bacana”, diz o pai, Gustavo.
Em tempo de tanta incerteza, em que o otimismo é mercadoria escassa, deu-se um pequeno recuo na semana passada — que não altera, felizmente, a baixíssima letalidade infantil do Sars-CoV-2. Relatos de pediatras de Nova York e do Reino Unido, depois confirmados por um artigo na prestigiada revista britânica The Lancet, com base em levantamentos feitos em Bérgamo, epicentro da contaminação na Itália, revelaram cerca de uma centena de casos do que batizaram de síndrome inflamatória multissistêmica em crianças (MIS-C, na sigla em inglês), semelhante à doença de Kawasaki. As crianças acometidas pela enfermidade, em média de 9 a 11 anos, não tossiam, tampouco manifestaram problemas respiratórios graves, embora tenham apresentado resultado positivo para os anticorpos contra a Covid-19. Tinham febre e erupção cutânea, olhos vermelhos, lábios secos ou rachados, vermelhidão na palma das mãos e na sola dos pés — no entanto, houve pouquíssimos casos de morte. A eclosão dos casos de MIS-C, ainda que poucos, impôs aos médicos uma indagação: por que crianças e adultos reagem de modo tão diferente ao vírus que parou o mundo? A resposta é fascinante.
Saudade de dança e de calor humano
Para os irmãos Felipe, 16 anos, e Gabriela, 12, a quarentena chegou como um furacão, e da agitação fez-se a criatividade. Para buscar calma nesse período de turbulência, Felipe decidiu começar a fazer terapia (à distância, claro). “Precisava ter feito antes, está me ajudando”, diz. A falta de contato com amigos e professores tem sido o mais difícil para os adolescentes. Gabriela organiza encontros por vídeo, estuda à beça e não sai do WhatsApp “Gostava muito de abraçar as pessoas e acho que não vai poder ser mais assim”, diz ela.
A principal explicação é que os sistemas imunológicos mudam com a idade. O corpo de um adulto quase sempre está preparado para ameaças familiares, já existentes, mas tem dificuldades para combater vírus novos — é o que ocorre agora, com a Covid-19, e também aconteceu com outras cepas de coronavírus que provocaram as epidemias de Sars e Mers. Os jovens foram razoavelmente poupados. Os pequenos, especialmente os bem pequenos, lidam constantemente com vírus que não são necessariamente novos, mas são novos para eles — e o organismo reage com saudável ímpeto pueril. Os bebês nascem com um vasto repertório de células imunes, as chamadas “células T”. O exército de células T é capaz de identificar virtualmente qualquer patógeno, criando uma memória afeita a enfrentar as infecções. Com o tempo, contudo, o metabolismo identifica os inimigos de sempre — mas começa a deixar escapar os novidadeiros. Por isso, doenças como catapora e rubéola são mais graves em adultos. No caso de Covid-19, não é muito diferente, com nuances.
Nem tão longe assim
Até o início da quarentena em São Paulo, Zuleika Falbo Martins, 70 anos, mantinha convívio intenso com os netos mais velhos, Pietra, de 5 anos, e Luigi, de 3. Buscava-os na escola, na natação e passava tardes com os dois. Com os novos tempos, o contato foi natural e necessariamente reduzido. Mas a família deu um jeito de não se perder de vista. Algumas vezes por semana, Christiane, mãe das crianças, os leva até o portão da casa de Zuleika. “Mesmo sem tocá-la, esse tipo de contato ajudou muito emocionalmente a todos nós”, diz Christiane.
É tranquilizador, portanto, que a meninada esteja razoavelmente protegida — viva! — e que, por cautela, mantenha-se apartada de quem tem mais idade, até que a ciência entregue um veredicto sobre a ação dos imberbes como transmissores do temido coronavírus. No entanto, em um aspecto a avassaladora mudança comportamental a que todos foram submetidos, com o isolamento social e a quarentena (tradução para estar longe da escola, dos amigos, da hora do recreio, do olho no olho, do sorriso largo e do choro sincero), começa a chamar a atenção de profissionais de saúde, especialmente de psicólogos e psiquiatras. Desenha-se o que poderia ser apelidado, ainda que precocemente, de “geração pandemia”.
Um bom modo de entender o que pode vir a acontecer é olhar para quem já está algumas casas à frente, com a curva de casos pousando. Um estudo da Universidade Miguel Hernández, da região de Alicante, na Espanha, examinou o impacto psicológico do confinamento em crianças do país e da Itália. Cerca de 90% dos 431 pais e filhos espanhóis entrevistados descreveram dificuldade de concentração, ansiedade e irritabilidade. Ressalve-se que, em cidades como Valência, por exemplo, vivia-se até a semana passada ambiente de filme de terror e suspense, com helicópteros rastreando movimentos e agentes de segurança esbravejando nos megafones: “Aqui é a polícia falando. Respeite as regras”. Para a psicóloga Mireia Orgilés, coordenadora do estudo espanhol, ouvida por VEJA, “embora as crianças tenham grande adaptabilidade a novas situações, elas têm dificuldade de acompanhar rupturas radicais”. O braço espanhol da ONG Save the Children informou que as medidas de distanciamento social poderiam causar “distúrbios psicológicos permanentes”. A organização entrevistou 6 000 pessoas na Alemanha, Finlândia, Espanha, Estados Unidos e Reino Unido. Na Espanha, 40% alegaram medo de trauma. É bom, contudo, entender que trauma é uma condição subjetiva — pode despontar em alguns, mas em outros não. A Sociedade Americana de Psicologia define trauma como “uma resposta emocional a um terrível evento como um acidente, estupro ou desastre natural; imediatamente após o evento, o choque e a negação são respostas comuns; as reações no longo prazo incluem emoções imprevisíveis, relacionamentos tensos e até sintomas físicos, como dores de cabeça ou náusea”. Embora essas sensações sejam normais, comuns até, algumas pessoas tropeçam para seguir em frente.
Não convém acender o sinal vermelho, até porque está tudo ainda no começo e, a bem da verdade, muitas crianças estão adorando ficar em casa, com os pais ao lado, ao alcance de uma brincadeira, do smartphone (claro), de ajuda na lição de casa (virtual, evidentemente). O que se percebe são reações típicas quando a meninada é instada a dizer do que sente falta: dos avós, em primeiríssimo lugar, do ar livre, da bola, do parque, como revelam as pessoas ouvidas por VEJA, cujos depoimentos e fotografias estão distribuídos nesta reportagem. No aspecto mais prático, talvez seja saudável buscar entender o que poderá ser feito logo mais, com o retorno a alguma normalidade, do que ensaiar problemas mentais no futuro, que talvez nem ocorram. Um par de indagações se impõe: quando as aulas voltarem, como reagirão as crianças e o que podem fazer as escolas? Para além das máscaras e da arquitetura — salas mais vazias, testes para Covid-19, mesas distantes, como já se veem na Europa —, as equipes pedagógicas terão de lidar com algo aparentemente tênue, intangível: o medo alimentado pela incerteza e pela insegurança. Aos educadores e pais, evidentemente, caberá aplainar as expectativas da nova vida. “É crucial manter as crianças a par de tudo, mas sem assustá-las”, diz a neuropediatra Liubiana Arantes de Araújo, diretora do departamento científico de pediatria do desenvolvimento e comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria.
O fim do isolamento, contudo, não significará o fim da epidemia. Até o aparecimento de uma vacina (veja mais na reportagem a seguir), o vírus ainda estará circulando e as escolas terão de se adaptar para ser um ambiente seguro. Mas como fazer isso? Diversos países começam a testar modelos que incluem redução na quantidade de alunos por sala, demarcação de distância mínima entre os estudantes, manutenção de aulas remotas, horários diferentes para as turmas e implementação de normas de higiene constantes. Na Dinamarca, por exemplo, apenas o ensino fundamental voltou à ativa. As crianças fazem fila de manhã ao lado de cones de trânsito espaçados em 1 metro e meio; são apenas dez alunos por sala, com um único professor; cinco crianças são permitidas no playground de cada vez. Portugal retomou as aulas presenciais do ensino médio. As medidas de proteção incluem uso obrigatório de máscaras, lavagem das mãos ao entrar e sair da escola, e horários de aula, intervalos e períodos de alimentação diferentes para cada turma. Na França, as aulas presenciais foram retomadas, mas não são obrigatórias. Diz Mireia Orgilés, da Universidade Miguel Hernández: “As crianças devem ser informadas da nova situação que encontrarão no fim da quarentena, na qual o contato social provavelmente permanecerá reduzido ainda por muito tempo”.
Há, sem dúvida, uma sensação de desconhecimento dos próximos passos que chega a ser agoniante. Nada, insista-se, apesar das mais de 330 000 mortes por Covid-19 em todo o mundo, que se compare a experiências de guerras — e também nelas, mesmo com o horror, sempre houve alguma válvula de escape para a sanidade. No início da II Guerra Mundial, milhões de crianças foram evacuadas de Londres e de outras cidades e enviadas para morar em lares adotivos no interior da Inglaterra. Esse êxodo, e o que aconteceu depois dele, virou tema de estudo da psicanalista Anna Freud, filha do pai da psicanálise. Em 1943, ela concluiria que os jovens que ficaram com suas famílias, debaixo de bombardeio, mostraram-se mais “felizes” que os exilados. O trabalho de Anna Freud inspiraria um outro, de seu contemporâneo John Bowlby, que investigou longas permanências em hospitais. Formou-se, então, uma ideia ainda muito influente, a da “teoria do apego”, que enfatiza o vínculo entre pais e filhos e os danos resultantes da separação. Abre-se, hoje, outro campo de investigação: o que pode vir a ocorrer com crianças afastadas não dos pais — dos avós, sim, insista-se —, mas dos professores, dos colegas e de tudo o mais? É a novíssima condição da geração pandemia. Passado o vendaval, não é difícil que sejam adultos melhores — e é certo que crescerão com mais informações e mais contato com a vida como ela é. Enquanto isso, ecoará, em famílias distanciadas, a tocante frase do escritor americano Alexander Haley (1921-1982): “Ninguém pode fazer pelas crianças o que os avós fazem. Os avós salpicam uma espécie de pó estelar sobre a vida delas”. Se ainda não dá para encontrá-los, que a solução seja a adotada pela menina Malu, da foto que abre esta reportagem: todos os dias pela manhã, ela faz uma videoconferência com a vó Vera Lúcia e o vô Chico.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688