Foram raros os momentos nos quais a medicina deparou com mistérios tão intricados em tão curto período de tempo quanto nos últimos dois anos. Depois do esforço para decifrar e controlar o coronavírus responsável pela Covid-19, o desafio agora é identificar o que está por trás das ocorrências de hepatite que há um mês atingem crianças em todo o mundo. O primeiro alerta foi feito no dia 15 de abril pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na ocasião, foram anunciados 74 casos de grave inflamação no fígado — o que define a hepatite — de origem desconhecida registrados no Reino Unido, na Irlanda e na Espanha. O que surpreendia era a agressividade da doença: seis pacientes precisaram de transplante.
Desde então, 348 casos prováveis foram notificados em vinte países, com uma morte e dezessete transplantes de fígado realizados. Outras treze nações investigam setenta episódios, inclusive o Brasil, onde os casos suspeitos passaram de sete para 28 em menos de uma semana e um registro de óbito está sob investigação. A hipótese mais forte é a de que a enfermidade esteja ligada à circulação do adenovírus, causadores de doenças respiratórias e gastrintestinais. Assim que as ocorrências surgiram, os especialistas começaram a investigar a possível relação com o impacto de infecções por SARS-CoV-2, o vírus da Covid-19, e até a coinfecção pelos dois agentes. “Cerca de 70% dos casos foram positivos para adenovírus e 18% para Covid-19”, disse Philippa Easterbrook, médica do programa global de HIV e hepatites da OMS. A busca por uma resposta se intensificou após ter ficado claro que a doença não estava ligada a nenhum dos microrganismos tradicionais associados a hepatites, A, B, C, D e E.
Há outros caminhos de investigação. Sabe-se que inflamações no fígado são causadas por vírus, consumo excessivo de álcool, de substâncias tóxicas, por medicamentos e condições autoimunes. Sua relação com o adenovírus também é sobejamente conhecida, mas intriga o fato de que, em geral, os quadros provocados por eles não serem tão críticos ou frequentes quanto os observados. A força-tarefa de especialistas mundiais montada para estudar os casos promete alguma luz em breve. É fundamental deixar claro, para que não prosperem as tolices, que a doença não tem nenhuma relação com a vacina contra a Covid-19. No Brasil, o Ministério da Saúde não informou até agora se tem um plano de enfrentamento se a hepatite chegar com força por aqui. O fato é que, a essa altura, algum tipo de mobilização deveria estar sendo realizada, especialmente com vistas ao preparo do sistema de transplantes pediátricos para um eventual aumento de demanda. “O Brasil tem condições de fazê-los, mas o problema é o volume”, avalia o médico André Ibrahim David, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo “É uma situação que parece uma epidemia.” Ainda dá tempo de ligar o alerta , evidentemente. Convém, contudo, prestar atenção e saber que, tal qual a ciência e o conhecimento chegaram a vacinas contra a atual pandemia, enfim razoavelmente controlada, também contra a misteriosa hepatite haverá imunização adequada.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789