Cai de vez um dos principais mitos sobre a vitamina D
Retratação de estudo com falhas que apontava benefício da vitamina para covid-19 enterra defesa do composto como panaceia contra a doença viral
Já faz um tempo que circulam inverdades relacionadas à vitamina D, como sua suposta ação contra a covid-19 e a ideia estapafúrdia de que ela seria um “remédio preventivo” para inúmeras doenças não ligadas à sua deficiência – caso de alguns tipos de câncer.
E, agora, o mito do efeito da vitamina contra a infecção pelo coronavírus se desfaz de vez. Quatro anos após o periódico PLOS ONE – um dos poucos que disponibiliza artigos de mais de 200 áreas de forma gratuita – publicar uma expression of concern (basicamente, um comunicado que levanta a possibilidade de haver problemas na pesquisa) em relação ao artigo “Vitamin D sufficiency, a serum 25-hydroxyvitamin D at least 30ng/mL reduced risk for adverse clinical outcomes in patients with COVID-19 infection”, usado pelos defensores dessa prática para prescrever o composto, o trabalho foi finalmente retratado.
De acordo com os editores do PLOS ONE, após a publicação do artigo, algumas preocupações foram levantadas quanto à validade dos resultados, das conclusões e a um possível conflito de interesse não mencionado.
Entre os problemas encontrados: (1) foram levantadas preocupações sobre o tamanho da amostra relatado no estudo e sua adequação aos objetivos da pesquisa; (2) dúvidas sobre se as análises estatísticas e os resultados eram suficientemente robustos para sustentar as conclusões do artigo, e como os possíveis fatores de confusão foram tratados; (3) tanto no título quanto nas conclusões, há afirmações que sugerem causalidade entre os níveis de vitamina D e os desfechos clínicos das infecções por COVID-19, algo que os dados apresentados não sustentam; (4) embora os autores tenham declarado não haver conflitos de interesse, existe informação publicamente disponível indicando que um dos autores, Michael F. Holick, tem potenciais conflitos financeiros.
Além de Holick, outro autor da pesquisa, o neurologista e pesquisador Mohammad Ali Sahraian, falou ao blog Retraction Watch que estava muito surpreso e incomodado com a decisão, afirmando que teria sido preferível que as questões suscitadas tivessem sido identificadas e abordadas durante o processo de revisão pré-publicação, em vez de após o trabalho ter sido tornado público – até agora, 5 de outubro de 2024, o artigo já foi citado 231 vezes.
Sahraian ainda destacou que a retratação foi injusta, antiética e desumana, já que se baseou nas falhas da equipe editorial, em vez de problemas inerentes ao próprio artigo. Já os pesquisadores Gideon Meyerowitz-Kats e Nick Brown, dois dos primeiros a apontar as falhas na pesquisa, comentaram que, embora a equipe editorial tenha demonstrado compromisso com a integridade ao investigar e retratar o artigo com base na baixa qualidade, e não por má conduta ou algo semelhante, não sabem ao certo se a decisão terá impacto na poluição da literatura, dado que a retratação demorou muito para ser publicada.
De acordo com David Knutson, líder de comunicações da PLOS, o caso em questão era complexo, e quatro anos foi o tempo necessário para conduzir uma investigação rigorosa e completa, além de lidar com alguns atrasos internos devido a prioridades concorrentes.
Ele também destacou: “Dada a complexidade deste caso, a natureza das preocupações e as possíveis implicações clínicas do artigo e das questões levantadas, publicamos uma Expression of Concern provisória logo após as preocupações serem trazidas à nossa atenção.” Por fim, ressaltou que os conflitos de interesse não desempenharam um papel na retratação do artigo, mas sim as preocupações com o desenho do estudo, a descrição metodológica e a confiabilidade das conclusões.
Mas, afinal, o que diz o artigo?
O trabalho propunha-se a investigar a hipótese de que a manutenção de níveis adequados de vitamina D no organismo poderia proteger contra o agravamento da infecção pelo vírus SARS-CoV-2, ajudando a evitar desfechos trágicos como doença grave ou morte.
Os autores avaliaram uma série de registros hospitalares de pacientes de COVID-19 que chegam ao departamento de emergência do Hospital Sina de Teerã, capital do Irã.
Dentre os dados coletados, foram incluídas informações sobre características demográficas (idade, sexo, IMC), hábito de fumar, histórico médico, principais sintomas clínicos e seu tempo de início, resultados do teste para presença do vírus, comorbidades, achados radiológicos e laboratoriais (como a avaliação dos níveis de minerais e vitaminas, incluindo a vitamina D, no sangue) e a progressão da doença.
Até 1º de maio de 2020 – data de corte do levantamento –, o banco de dados do hospital apresentava um total de 611 pacientes com COVID-19. Havia informação disponível sobre o nível de vitamina D no momento da hospitalização de, 235 deles.
Observou-se que 157 pacientes (67,2%) apresentavam níveis de vitamina D abaixo dos considerados ideais.
Níveis adequados de vitamina D apareceram associados a um risco significativamente menor de inconsciência e hipóxia (falta ou deficiência de oxigênio nos tecidos), além de estarem relacionados a um menor nível de PCR sérico (uma proteína que, quando elevada, sugere inflamação ou infecção) e a uma maior porcentagem de linfócitos no sangue (ou seja, uma quantidade maior de um tipo específico de glóbulos brancos que atua na defesa contra infecções virais e na regulação da resposta imune). No entanto, não houve diferenças significativas na duração da hospitalização e nas admissões à UTI entre os pacientes com e sem suficiência de vitamina D.
Em relação à mortalidade, foi observado que, na população estudada, ninguém com menos de 40 anos morreu em decorrência da infecção; contudo, entre os 206 pacientes com 40 anos ou mais, 16,3% (33 pacientes) sucumbiram à infecção. Desses, 20% apresentaram níveis de vitamina D abaixo do ideal, 9,7% tinham uma concentração adequada, e 6,3% uma concentração elevada, segundo critérios do Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
Utilizando novamente os critérios do CDC, verificou-se que 74% dos pacientes analisados apresentavam infecção grave por COVID-19, sendo esta menos prevalente em pacientes com níveis adequados de vitamina D em comparação com os insuficientes (63,6% vs. 77,2%, respectivamente).
Além disso, uma análise estatística indicou que pacientes com níveis baixos de vitamina D apresentaram um risco relativo (uma medida que indica o risco de certo evento ocorrer em um grupo em comparação a outro) de 1,59 associado à gravidade da COVID-19, ou seja, um aumento de 59% no risco.
Com base nisso, os autores concluem que o estudo revelou uma associação independente entre a suficiência de vitamina D e a redução do risco de desfechos clínicos adversos em pacientes com COVID-19. A gravidade dos desfechos clínicos e a mortalidade foram menores em pacientes com níveis suficientes de vitamina D, e sugerem que a vitamina pode atuar melhorando a função imune.
Sem querer parecer engenheiro de obra pronta – mas já sendo – o artigo, antes mesmo da expression of concern, apresentava algumas limitações significativas, conforme apontado pelos próprios autores. Por exemplo, foram analisados apenas pacientes com níveis de vitamina D registrados, e, tão importante quanto, o teste de RT-PCR, utilizado para confirmar o diagnóstico definitivo de COVID-19, foi realizado em apenas 31,06% da amostra.
Além disso, alguns fatores de confusão, como tabagismo e status socioeconômico, não foram registrados para todos os pacientes, o que pode ter impactado a gravidade da COVID-19 observada.
Ademais, acredito que todos concordam que a principal limitação foi o desenho do estudo, que, por ser de caráter observacional, só pode estabelecer correlações entre a variável investigada e o desfecho, e não uma relação de causalidade.
Esses foram alguns dos motivos para o artigo ter sido retratado.
COVID-19 e Vitamina D
Não sei se Michael Holick foi o primeiro a suscitar a ideia de um potencial efeito benéfico da vitamina D em relação ao vírus; contudo, pelo que li sobre sua biografia e seus trabalhos, tenho grande convicção de que foi um dos mais entusiasmados. Em um artigo intitulado “Vitamin D and Its Potential Benefit for the COVID-19 Pandemic,” Holick e colegas avaliaram os possíveis mecanismos biológicos da vitamina D em relação à COVID-19, incluindo diversas hipóteses de interação com o sistema imune, em escala celular e molecular.
Deixando de lado os mecanismos de ação, os autores salientam que estudos observacionais encontraram uma associação entre as concentrações de vitamina D e o risco de contrair COVID-19. Por exemplo, um estudo verificou que a deficiência de vitamina D estava associada a um aumento no risco de teste positivo para COVID-19.
Esse artigo de Holick, por não apresentar metodologia, pode ser classificado como uma revisão narrativa. Nele, Holick e colegas constroem uma narrativa – muito questionável, por sinal – para persuadir pesquisadores e outros interessados em ciência a aumentarem seus níveis de vitamina D, seja por meio da exposição solar ou da suplementação. Curiosamente, das 119 referências utilizadas no artigo, Holick é autor de 15, além de outras em que não foi mencionado diretamente, mas de que possivelmente participou, como no caso do artigo retratado que discutimos anteriormente, e que também foi utilizado como referência.
Os autores cometem um salto lógico preocupante. Com base no que apresentam, é impossível afirmar que os níveis séricos de vitamina D diminuem o risco de infecção ou sua gravidade, ou que a suplementação seja eficaz nesse contexto.
Embora estudos observacionais, que só conseguem estabelecer correlações, tenham sugerido um possível benefício, estudos com desenhos mais rigorosos, como ensaios clínicos randomizados, capazes de aferir causalidade, mostraram resultados conflitantes. Seguindo essa lógica, se não há evidências robustas que comprovem o benefício de aumentar as concentrações séricas além do limite “normal”, qual seria a justificativa para o uso de doses excessivas de vitamina D?
A literatura atual sugere que, no caso da COVID-19, o benefício é nulo, resultando apenas em um esvaziamento da carteira e no risco de hipervitaminose. Mas, claro, não precisam acreditar na minha opinião cética.
Em 2023, cientistas publicaram uma revisão sistemática intitulada “Is the vitamin D status of patients with COVID-19 associated with reduced mortality? A systematic review and meta-analysis”, com o objetivo de avaliar a associação entre o status de vitamina D e a mortalidade em pacientes com COVID-19.
Para isso, os pesquisadores selecionaram artigos publicados entre novembro de 2020 e 24 de abril de 2022, seguindo critérios rigorosos: (1) incluir pacientes hospitalizados com COVID-19 submetidos ao teste RT-PCR para confirmar o diagnóstico; (2) os participantes deveriam ter mais de 18 anos e ter o status de vitamina D classificado como “deficiente” ou “insuficiente” com base nos níveis séricos medidos próximos ao diagnóstico (até 30 dias antes ou até 7 dias após); (3) incluir como grupo de comparação pacientes com níveis “suficientes” de vitamina D; e (4) examinar a associação entre o status de vitamina D e a mortalidade.
Vale destacar que os pesquisadores realizaram duas análises estratificadas para avaliar o impacto da deficiência de vitamina D nos desfechos de mortalidade. A primeira considerou diferentes níveis de corte da vitamina D. Já a segunda análise comparou estudos que ajustaram suas medições para fatores de confusão com aqueles que não realizaram tais ajustes.
A busca inicial identificou 1.340 artigos. Após excluir duplicatas e os que não atendiam aos critérios de qualidade, vinte e um foram incluídos na análise, totalizando 6.096 participantes. A análise geral indicou que os pacientes com níveis deficientes de vitamina D apresentaram maior risco de mortalidade em comparação com aqueles com níveis suficientes.
Nos estudos que levaram em conta idade e pelo menos um fator de confusão (como obesidade, doença renal crônica ou diabetes), não foi encontrada associação entre baixos níveis de vitamina D e mortalidade. Nos estudos que não realizaram ajustes para esses fatores de confusão, observou-se um aumento no risco de mortalidade relacionado a baixos níveis de vitamina D.
Os autores discutem que, embora muitos estudos observacionais tenham associado níveis baixos de vitamina D a desfechos desfavoráveis em pacientes com COVID-19, uma grande parte deles utilizou níveis medidos meses ou até anos antes do diagnóstico. Isso pode ter influenciado os resultados, uma vez que os níveis séricos de vitamina D podem variar de 13% a 26% ao longo de quatro meses, além de serem afetados pela idade e pelo surgimento de comorbidades.
Também destacam que a deficiência de vitamina D e o agravamento da COVID-19 têm muitos fatores de risco em comum, como diabetes, obesidade, idade avançada, hipertensão, entre outros. Assim, é possível que quando aparecem juntos, tanto o agravamento quanto a deficiência não tenham relação direta entre si, mas sejam precipitados por fatores de risco comuns.
Outra hipótese sugere que o SARS-CoV-2 pode danificar o tecido renal e, em menor grau, o pulmonar, resultando em uma redução da forma ativa da vitamina D no sangue.
Os autores concluem que, de forma geral, o estado de vitamina D está associado à mortalidade em pacientes com COVID-19. No entanto, essa associação não se mantém quando a análise inclui estudos que ajustaram as medidas de efeito para fatores de confusão.
Lições
Que este aprendizado sirva para a próxima pandemia – que, com toda certeza, virá. Não é porque uma hipótese parte de uma teoria que, aparentemente, faz sentido que ela será eficaz. No caso, parecia lógico que uma deficiência de vitamina D – ou de qualquer outro micronutriente – poderia exercer um efeito negativo no risco de mortalidade por COVID-19. Contudo, as evidências nos indicam que a relação pode ser mais complicada do que aparenta e, talvez, a concentração não exerça uma influência significativa nesse desfecho.
Deixando claro: isso não significa que, se for constatada uma deficiência, não devemos corrigi-la. No entanto, esses achados sugerem que esse possivelmente não será um dos problemas principais a serem tratados diante da infecção. Ainda mais importante, ela também nos indica que suplementações em dosagens cavalares, geralmente recomendadas por alguns “doutores” de redes sociais para aumentar os níveis séricos para faixas consideradas “ótimas”, não geram o efeito esperado.
Embora muitos estudos tenham – e continuem – apontando uma possível relação entre o nível de vitamina D e desfechos importantes da COVID-19 (como severidade da doença, suscetibilidade e até mesmo mortalidade), os resultados não são conclusivos. Possivelmente, a maioria dos estudos observacionais enfrenta o mesmo problema: a presença de covariáveis que afetam os resultados.
Mesmo ao analisarmos revisões sistemáticas com metanálises que incluíram apenas RCTs, não obtemos uma resposta clara, uma vez que os resultados são conflitantes. Isso ocorre principalmente devido aos pequenos tamanhos das amostras, à baixa qualidade dos RCTs e à significativa heterogeneidade entre os estudos incluídos.
Diante de tudo que foi apresentado, acredito que uma posição mais parcimoniosa seja a mais correta. Ou seja, em vez de suplementar doses elevadas com o intuito de alcançar as “melhores concentrações séricas” — que possivelmente não existam —, é preferível suplementar apenas em caso de deficiência nutricional constatada.
E, ainda mais importante, lembre-se de que estar com os níveis de vitamina D “em dia” não é um salvo-conduto que garanta que o agravamento de uma eventual infecção por COVID-19 não vai ocorrer. Por isso, outras medidas são, e muito, mais efetivas e recomendadas, como manter a vacinação em dia e utilizar máscaras quando houver suspeita de infecção.
* Mauro Proença é nutricionista e colaborador da Revista Questão de Ciência, onde este artigo foi originalmente publicado