Cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) deram um importante passo para aprofundar o entendimento de um dos tipos de epilepsia, a do lobo temporal mesial (ELTM), considerada a mais comum e refratária ao tratamento farmacológico. Em estudo recentemente publicado, o grupo mostrou que, apesar das semelhanças fenotípicas (características observáveis da doença), há diferenças no processo de decodificação da informação genética (perfil de expressão gênica) entre os pacientes com a variante familiar e a esporádica.
O trabalho avaliou, pela primeira vez, o perfil do RNA mensageiro (mRNA, molécula que contém a informação para a produção de proteínas) de tecido cirúrgico obtido de pacientes com a ELTM familiar e comparou com a ELTM esporádica. A partir da descoberta, o grupo vem procurando compostos e substâncias que poderão ser candidatos a novas alternativas de tratamento. Outro passo já em andamento é a busca por eventuais mutações genéticas que podem levar à doença.
Desenvolvida por integrantes do Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (BRAINN), a pesquisa é destaque em edição especial da revista científica Society for Experimental Biology and Medicine (SEBM). A edição temática é dedicada às contribuições de mulheres líderes em ciências biomédicas de vários países, incluindo o Brasil, com o objetivo de reconhecer o papel fundamental delas em esferas da academia e para que possam inspirar a próxima geração de cientistas.
“Essa edição especial é uma homenagem às mulheres cientistas consideradas líderes, que incluem e incentivam suas orientandas em mentorias e entre os autores dos trabalhos. Acho extremamente gratificante poder formar alunos e vê-los se colocando, mas fico particularmente feliz de formar mulheres pesquisadoras, que também já estão ocupando posições de liderança”, diz à Agência Fapesp a neurocientista e autora correspondente do artigo Iscia Lopes-Cendes. Ela é professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e integrante do BRAINN, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que no mundo, apesar de as mulheres representarem um terço dos pesquisadores, são menos de 12% dos membros de academias de ciências nacionais. Pelas estimativas da ONU, as pesquisadoras tendem a ter carreiras mais curtas e menos remuneradas, tendo o trabalho sub-representado em publicações de alto nível. No caso das engenharias, por exemplo, elas são 28% dos formandos.
“Ainda enfrentamos muitas dificuldades e obstáculos. As mulheres conseguem chegar longe, em posições de destaque que almejam, mas sua performance e dedicação têm de estar acima daquilo que um homem precisaria para a mesma posição. Nós ainda sofremos essa invisibilidade, fazendo até mesmo sacrifícios individuais para sermos reconhecidas”, completa Lopes-Cendes.
As três primeiras autoras do artigo, que em algum momento foram orientandas de Iscia, vêm ocupando cargos de liderança. É o caso da professora Claudia Maurer-Morelli, que é coordenadora da Comissão Geral de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas; da pesquisadora e professora Jaíra Ferreira de Vasconcellos, líder de grupo de pesquisa na Universidade James Madison, na Virgínia (Estados Unidos); e da pesquisadora Estela Maria Bruxel, pós-doutoranda na Unicamp, que está em período no exterior.
As descobertas
Os resultados da pesquisa apontam que, apesar das semelhanças fenotípicas, as duas formas de epilepsia do lobo temporal mesial apresentam assinaturas moleculares distintas, sugerindo diferentes mecanismos moleculares.
No tecido de pacientes com ELTM familiar, os cientistas encontraram uma super-representação das vias biológicas relacionadas à resposta proteica, processamento de mRNA, plasticidade (capacidade do cérebro de se adaptar às mudanças no ambiente) e função sináptica.
Já em ELTM esporádica, o perfil de expressão gênica do hipocampo – importante área do cérebro ligada ao aprendizado e à memória – sugere que a resposta inflamatória é altamente ativada. Nesse caso, foram registradas síntese e regulação de prostaglandinas (compostos lipídicos com efeitos semelhantes aos dos hormônios) e vias de fagocitose de patógenos microgliais (um tipo de célula do sistema nervoso central que desempenha várias funções).
Em ambos os grupos, foram encontrados enriquecimento de conjuntos de genes envolvidos em citocinas (moléculas que fazem a “comunicação” entre as células do sistema imune) e mediadores inflamatórios, além de vias de receptores de quimiocinas (um tipo de citocina que controla a movimentação das células de defesa).
“Utilizamos assinatura da expressão gênica em larga escala para caracterizar o mecanismo da doença. Com essas técnicas de alto desempenho é possível obter um mapa das vias moleculares presentes, sejam elas ativadas ou inibidas. Identificamos que as vias mais ativadas são diferentes. Já tínhamos a hipótese de que na ELTM esporádica a via mais ativada era da inflamação e constatamos agora. A diferença do nosso estudo foi trabalhar com tecido de pacientes com a forma familiar submetidos à cirurgia”, explica Iscia.
As epilepsias formam um conjunto de síndromes neurológicas crônicas caracterizadas por crises epilépticas espontâneas causadas por descargas neuronais anormais. Das síndromes epilépticas em adultos, a epilepsia do lobo temporal mesial afeta entre 30% e 40% desses pacientes, que não apresentam resposta satisfatória aos medicamentos existentes e muitas vezes precisam ser submetidos à cirurgia.
Na maioria dos pacientes com ELTM é encontrada uma lesão característica que envolve o hipocampo, a chamada esclerose mesial temporal (EMT), caracterizada por extensa morte neuronal levando à atrofia hipocampal.
Nos anos 2000, o grupo de Iscia, incluindo o professor Fernando Cendes, coordenador do BRAINN, identificou e descreveu a epilepsia de lobo temporal mesial familiar com base em estudos genéticos desenvolvidos na época e questionários envolvendo informações sobre as famílias dos pacientes.
“Trabalho com mulheres que servem de inspiração para continuar desenvolvendo pesquisa de qualidade e que visa, quem sabe um dia, encontrar soluções que levarão bem-estar aos pacientes que sofrem de epilepsia”, diz Bruxel. O estudo recebeu apoio da Fapesp por meio de outros cinco projetos.