Brasileiros criam meio para transformar paracetamol em potente sedativo
Comprimidos do analgésico popular, inclusive vencidos, podem virar insumo para a fabricação de fármaco usado em intubação de pacientes nos hospitais
Comprimidos de paracetamol estocados em grandes quantidades e até vencidos podem virar insumo para a fabricação de propofol, fármaco utilizado como sedativo durante o processo de intubação em hospitais – o que evitaria sua escassez durante crises sanitárias como a da Covid-19. O procedimento, desenvolvido na Universidade Federal do ABC (UFABC) e publicado na revista ACS Sustainable Chemistry & Engineering, é simples, eficaz, sustentável e pode ser reproduzido pela indústria em larga escala.
Insumo farmacêutico comum e abundante, não é incomum que o paracetamol sobre nos estoques de hospitais e nas prateleiras de farmácias. Quando a data de vencimento chega, o produto é simplesmente descartado.
“O ideal seria que o processo acontecesse por meio da logística reversa: o paciente ou hospital entrega para a farmácia, que devolve para a indústria, responsável pela incineração, inclusive com aproveitamento da energia da queima em alguma outra etapa”, explica Álvaro Takeo Omori, professor de química da UFABC e autor do estudo. “No entanto, sabemos que isso nem sempre ocorre e o paracetamol que entra no mercado é fabricado do zero, com extração de fontes de carbono.”
Por outro lado, há medicamentos que são mais escassos em unidades de saúde, como é o caso daqueles que fazem parte do “kit intubação”. Durante a segunda onda da pandemia de COVID-19 no Brasil, o aumento acelerado de casos diminuiu a disponibilidade do sedativo propofol. Apesar de ser uma molécula simples, sua formulação exige um grau de pureza muito elevado, o que faz com que poucas indústrias farmacêuticas se comprometam a produzi-la, elevando seu custo.
Para evitar o desperdício do primeiro medicamento e a falta do segundo durante emergências, cientistas do Centro de Ciências Naturais e Humanas da UFABC (CCNH-UFABC) desenvolveram com apoio da FAPESP um método capaz de unir as duas cadeias de produção em um modelo de economia circular.
“O processo que criamos é um exemplo de reaproveitamento de insumo farmacêutico ativo: é mais ambientalmente benigno porque aproveitamos um fármaco produzido em grande quantidade que já completou seu ciclo de vida e sobrou, sem descartá-lo ou queimá-lo, para suprir outra cadeia de produção”, afirma Omori.
Processo em frasco único
No estudo, o próprio comprimido de paracetamol – independentemente do prazo de validade – foi usado como matéria-prima, sem a necessidade de retirar outros componentes de sua composição para isolar o princípio ativo. Além disso, como todas as etapas foram executadas em meio ácido, foi possível realizar toda a síntese em um único frasco de reação. Essa abordagem, chamada “one-pot”, é mais eficaz e sustentável, evitando etapas de extração e purificação para cada transformação envolvida, trazendo economia de tempo e custo.
Um dos desafios encontrados foi a etapa de purificação, feita no final do processo. A solução encontrada pelos pesquisadores foi uma simples destilação (separação dos componentes). Ao contrário da cromatografia – comumente utilizada em experimentos e estudos realizados em laboratórios de universidades –, é simples e não gera tantos resíduos, o que facilita e permite o escalonamento pela indústria.
“Com esse método, conseguimos chegar a altos níveis de pureza e rendimento de 47%, que é comparável ao de outros trabalhos já publicados na literatura científica”, conta Omori.
Ainda segundo o pesquisador, apesar de já haver relatos na literatura que descrevem estratégias para obtenção de um propofol de pureza adequada para o uso em intubação, partindo de outros reagentes e evitando a formação de mais subprodutos que o processo original, esses métodos são caros e, do ponto de vista ambiental, requerem altas temperaturas e condições energéticas, além de utilizarem solventes tóxicos e gerarem muito resíduos.
Vale destacar que, antes de ser aplicada na prática, a estratégia descrita na revista ACS Sustainable Chemistry & Engineering ainda precisa passar por mais testes para atestar a pureza do produto final.
Também assinam o estudo os pesquisadores da UFABC Leonardo Costa Messina e Carollyny Silva de Espindola.