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As UTIS estão na UTI

Faltam vagas, médicos, recursos e medicamentos. O cenário dramático no país faz com que profissionais muitas vezes tenham de escolher a quem ceder o leito

Por Ludhmila Abrahão Hajjar*
Atualizado em 1 mar 2019, 07h00 - Publicado em 1 mar 2019, 07h00

A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é uma estrutura hospitalar caracterizada pela capacidade de atender pacientes em estado grave ou potencialmente grave. Para cumprir sua missão, deve ser dotada de recursos humanos e técnicos de excelência para minimizar o sofrimento das pessoas, aliviar e proporcionar conforto, e sobretudo promover a cura. Com o aumento da expectativa de vida da população e a predominância de doenças crônicas como as principais causas de mortalidade, a necessidade de leitos de UTI hoje é crescente no Brasil, à semelhança da maioria dos países desenvolvidos. A questão é que o cenário da terapia intensiva está muitíssimo aquém das necessidades da população — tanto em números quanto em qualidade.

Estudo recente do Conselho Federal de Medicina demonstrou que menos de 10% dos municípios brasileiros oferecem esse tipo de leito pelo Sistema Único de Saúde (SUS): apenas 532 de 5.570 municípios. De acordo com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, o Brasil tem quase 45.000 leitos de UTI. Desses, 49% estão disponíveis para o SUS e 51%, para instituições privadas ou de saúde suplementar. Também chama atenção a distribuição irregular dos leitos: a Região Sudeste concentra 53,4% do total. A Região Norte tem apenas 5%. A falta de leitos e a baixa qualidade do atendimento em terapia intensiva são constatadas nos dois sistemas de saúde, mas o cenário dramático é mais visível no SUS, pois os hospitais privados têm maior disponibilidade de recursos humanos e tecnológicos, além de melhores instalações físicas.

O dia a dia de um intensivista no Brasil, em especial de um hospital público, infelizmente, é feito de desafios inimagináveis: devemos escolher a quem ceder o leito (o paciente em estado mais grave entre milhares de outros em estado grave); determinar quem é o paciente que deverá receber hemodiálise (pois não há hemodiálise para todos que precisam dela); deixar de administrar o antibiótico adequado (por ele não estar acessível no hospital); ter de utilizar o tratamento menos eficiente; deixar de caminhar com o paciente na UTI pois não há equipe de fisioterapia; restringir a permanência da família ao lado do paciente (não há infraestrutura para isso); não possibilitar dignidade durante o processo de morte… São muitos nãos. Ao não dispormos de terapias intensivas avançadas, não estamos cumprindo o artigo 196 da nossa Constituição — a saúde é direito de todos e dever do Estado — no momento mais difícil que uma família enfrenta: o diagnóstico de uma doença grave, aguda, que pode tirar a vida de um ente querido ou incapacitá-lo. Para que a situação mude, não basta aumentar o número de leitos ou investir em bons profissionais. É preciso mudar todo o entorno desse setor, o mais delicado de qualquer hospital.

“Menos de 10% dos municípios brasileiros oferecem leitos para tratamento intensivo pelo Sistema Único de Saúde”

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Mas quais são os requisitos necessários para que a terapia intensiva garanta tratamento adequado aos pacientes? Aponto uma dúzia.

– A equipe da UTI deve ser formada por inúmeros profissionais especializados: o fisioterapeuta, o enfermeiro, o farmacêutico, o nutricionista, o fonoaudiólogo, o psicólogo e um time de médicos intensivistas dedicados 24 horas por dia;

– A terapia intensiva deve desempenhar papel central no hospital, ampliando sua área de atuação para atender pacientes críticos onde quer que eles se encontrem — seja na enfermaria, seja no pronto atendimento, seja no centro cirúrgico. Os chamados “times de resposta rápida” são formados por profissionais da terapia intensiva que em questão de segundos se movem da UTI com o propósito de solucionar emergências, contando com inovação e recursos técnicos adequados para ser acionados e para atender com eficiência;

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– Melhores desfechos são alcançados na terapia intensiva à medida que compreendemos que avanços nos processos de cuidado geram melhores resultados quando comparados a intervenções específicas — isso é obtido por meio da busca pela segurança do paciente crítico e da implementação de iniciativas de qualidade;

– A terapia intensiva deve ter como um foco do cuidado a prevenção da incapacidade e a busca por qualidade de vida pós-­UTI, minimizando a ocorrência de distúrbios neuropsiquiátricos tardios, disfunções neuromusculares e a incapacidade de reabilitação e de retorno à vida laboral e em sociedade;

– A UTI deve pautar-se pelos princípios e conceitos bioéticos, que visam a maximizar a ética do cuidado e o respeito à dignidade humana. As atribuições profissionais não se restringem à manutenção da vida — devem também incluir elementos da atenção integral, como o acolhimento às famílias, o alívio da ansiedade e do sofrimento, o entendimento do prognóstico da doença à luz das comorbidades do paciente e a compreensão da futilidade terapêutica. Morrer com dignidade tem de ser uma garantia aos pacientes sem possibilidade de recuperação;

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– A UTI deve criar ambiente e condições para que paciente e familiares compreendam a doença para enfrentá-la juntos, com o fim de resgatar a saúde, ou em algumas situações facilitar a consciência da inevitabilidade da morte. Isso inclui instalações físicas e recursos humanos;

– A UTI do século XXI deve contar com equipamentos modernos de monitorização, ferramentas terapêuticas atualizadas e materiais e medicamentos de ponta com eficácia comprovada, além de ter os processos bem estruturados para garantir segurança aos pacientes, bem como estrutura física destinada a auxiliar na recuperação do paciente;

– A UTI ideal deve ter uma gestão moderna de vagas, sem sofrer influências de individualidades, com critérios bem definidos de alta e admissão, de forma a assegurar seu amplo uso;

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– A UTI deve ter transparência em resultados, notificando eventos adversos, registrando propostas de melhorias e comparando-se a outras de padrão de excelência;

– Deve haver disponibilidade de unidades intermediárias nos hospitais com leitos de UTI, para concentrar na UTI apenas os pacientes em situação mais grave ou potencialmente grave;

– É fundamental uma maior integração entre as UTIs públicas e privadas para alocação adequada dos recursos, utilizando-se um sistema de transporte eficiente e o intercâmbio de informações, treinamento e tecnologia;

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– Os profissionais que trabalham no ambiente da terapia intensiva, além de treinamento e capacitação adequados, devem ter dedicação e compaixão pelo próximo. Muitas vezes, compartilhar memórias, ouvir histórias e estar presente nos momentos finais da vida de um paciente alivia o sofrimento mais que medicamentos.

O envolvimento de toda a sociedade, das universidades e da classe política nesse tema é condição necessária para a modificação desse triste cenário do Brasil de 2019: milhares de mortes que poderiam ser evitadas se os brasileiros tivessem acesso a terapia intensiva de qualidade. Que nós, médicos intensivistas e os demais profissionais de saúde da terapia intensiva, tenhamos a consciência diária do significado da nossa profissão e da imensa responsabilidade que nos cerca.

* Ludhmila Abrahão Hajjar, professora associada de cardiologia da Faculdade de Medicina da USP, é supervisora da UTI cirúrgica do Instituto do Coração, coordenadora das UTIs do Instituto do Câncer de São Paulo e das UTIs cardiológicas do Hospital Sírio-Libanês

Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624

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