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As lições da pandemia

Se há algo de positivo a ser extraído da tragédia, é a certeza de que é no meio do furacão que se escancaram também as oportunidades de correções imediatas

Por Sidney Klajner*
Atualizado em 4 jun 2024, 14h03 - Publicado em 4 dez 2020, 06h00

Os sistemas de saúde do mundo nunca foram testados ao limite como agora, durante a pandemia de Covid-19. Se há algo de positivo, porém, a ser extraído da maior tragédia sanitária do último século, é a crença de que, conforme ensina a história, é justamente no meio do furacão que se escancaram as fragilidades e as possibilidades de correções. Dez meses após a chegada do novo coronavírus ao Brasil, estão evidentes os gargalos e as saídas para que o país aprimore as estruturas de assistência médica de forma a oferecer a seus cidadãos saúde de melhor qualidade. Não que eles fossem desconhecidos — muito longe disso —, mas a urgência por soluções diante da catástrofe atual funcionou como um holofote que jogou luz sobre os obstáculos que impedem ou prejudicam o atendimento.

Meu temor é o de que, apesar da maior visibilidade dos problemas e do discurso de mudanças repetido especialmente nos momentos mais agudos da pandemia, o Brasil esteja perdendo a janela de oportunidade de promover efetivamente as transformações necessárias para uma organização de saúde mais eficiente, segura e financeiramente sustentável. E as portas que foram abertas se fecharão se não tivermos voz ativa, se não promovermos um chamamento constante.

Os sinais de que as aberturas para as mudanças necessárias trazidas à tona pela Covid-19 podem estar se fechando vêm de lados distintos. Ninguém pode discordar da relevância do SUS para a população brasileira, tampouco negar o papel fundamental que o sistema desempenha durante a pandemia. Sete em cada dez brasileiros têm no SUS a única possibilidade de atendimento à doença e a todas as outras enfermidades que podem acometê-los. E, apesar das deficiências historicamente conhecidas, a estrutura demonstra extrema resiliência nesses meses sob o coronavírus. Além disso, o SUS empreende o trabalho de atenção primária à saúde e de medicina de família, cuja base é a prevenção de doenças, máxima que deve ser o objetivo de todo sistema de saúde. No entanto, o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2021 prevê a destinação de cerca de 40 bilhões de reais a menos para o SUS do que o alocado em 2020. Mesmo depois da clara demonstração da importância do SUS, vamos perder a chance?

Qual é o propósito da uberização dos laboratórios? É preciso é evitar o exagero na realização de exames

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A questão leva a outra pergunta: a pandemia ensinou o verdadeiro significado de valor quando se trata de saúde? Temo que ainda não. Embora tudo seja muito bonito no papel, muitas empresas do segmento contratam e mudam suas estratégias conforme o vento sopra e o que sai mais barato. A tônica do debate atual é a necessidade da ampliação de ações de prevenção. O envelhecimento da população, somado a hábitos de vida que elevam o risco para doenças cardiovasculares, por exemplo, coloca o desafio de frear a escalada de casos por meio de medidas preventivas. De outra forma, a roda continuará girando no sentido da indústria da doença e não da saúde. Entretanto, demasiadas vezes o raciocínio do responsável pelo financiamento é: se você investe em gerar saúde, daqui a um ano o paciente pode não ser mais seu. Você planta saúde para o paciente do outro. Portanto, não vale a pena. Infelizmente, por muito pouco as posições em favor da atenção primária andam para trás.

A mesma coisa acontece quando falamos da troca da remuneração por serviço pela remuneração por valor. O pagamento por serviços executados estimula a realização de exames e procedimentos. Quanto mais numerosos eles forem, mais se lucrará. Esse modelo está na base da indústria da doença. O pagamento por valor, no entanto, prevê a remuneração baseada em programas de qualidade, segurança e prevenção, aquilo que agrega valor. Basta, porém, uma crise para muitas organizações repensarem o novo modelo e desejarem voltar a fazer exames de ressonância magnética sem uma indicação precisa.

É preocupante que o conceito do valor em saúde ainda esteja tão volátil. Propostas de novas operações na área continuam a ter como meta somente o ganho financeiro e não o que a iniciativa entregará de benefício verdadeiro ao paciente. Qual o propósito, por exemplo, de criar formas de uberização de laboratórios em busca de exames mais baratos? De que maneira isso agrega valor à saúde? O que é preciso é evitar o uso desnecessário de exames, algo que, no fim, pode prejudicar somente o paciente. Ele é quem fica sujeito a desconfortos e exposto à radiação sem precisar. Além disso, o excesso de testes encarece o custo das operadoras e quem pagará o preço será o paciente, no momento do reajuste.

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Da mesma forma, deve-se questionar a procedência de empreendimentos cujo apelo é o de financiar procedimentos cirúrgicos. Será que aquele paciente precisa mesmo da cirurgia? A experiência mostra que, em geral, o número de casos que necessitam de cirurgia é menor do que o de procedimentos realizados. Em um programa de segunda opinião para correções cirúrgicas para dor nas costas instituído no Hospital Israelita Albert Einstein, concluiu-se que 61% das indicações eram desnecessárias. A quem o financiamento de cirurgias vai de fato beneficiar? Por que não criar e investir em sistemas de prevenção por meio do estímulo à prática de exercícios físicos, do combate à obesidade e do controle do stress, clássicos fatores de risco para boa parte das enfermidades associadas ao estilo de vida? É preciso refletir a respeito do valor que a organização entrega ao paciente e à sociedade. O paciente pode recorrer a ela para um exame ou uma cirurgia, mas, se os procedimentos não tiverem indicação médica verdadeira, a instituição estará prestando um péssimo serviço para a saúde.

Não podemos perder a oportunidade que a pandemia nos trouxe de reformular a cadeia de assistência médica no país. É uma chance de preparar o Brasil para os desafios do futuro, que exigirão sistemas voltados à prevenção e ao uso racional de tecnologia, e tendo o paciente no centro de tudo. É a chance de focarmos a melhoria da indústria de insumos, a melhor gestão do SUS, o estabelecimento de uma rede de metagenômica para estudo e acompanhamento da evolução de vírus em nosso país — que seria fruto da parceria público-privada que se fez notável durante a pandemia. Porém, será que daqui a seis meses, como é comum no Brasil, teremos nos esquecido de tudo e estaremos discutindo mais uma vez o preço de um equipamento sem considerar alguns dos princípios básicos que os meses sob o coronavírus nos mostraram, como o de aferir o valor em saúde que a tecnologia proporcionará? Será que teremos novamente colocado na gaveta os projetos e programas de atenção primária? Será que os discursos eram só discursos? Fazendo uma analogia com o momento mais decisivo do futebol, quando a bola está na marca do pênalti à espera do artilheiro, o Brasil tem condições de fazer um golaço na saúde se mostrar que as lições da Covid-19 foram aprendidas. Caso contrário, a vitória nos escapará dos pés.

*Sidney Klajner é presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

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Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716

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