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Afogados na lama

A maioria das vítimas de Brumadinho morreu por falta de ar e esmagamento. Outras, por desidratação. Mas os problemas atingem também os sobreviventes

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 19h56 - Publicado em 1 fev 2019, 07h00

Como se morre na lama? A pergunta é dura, quase inaceitável, e a resposta, dramática. Por um reflexo de sobrevivência, a reação imediata das vítimas diante de uma onda de lama é prender a respiração. Trata-se de reação que, paradoxalmente, leva à morte mais depressa. Ao retomar a respiração, o corpo instintivamente volta a inalar oxigênio com mais força. O resultado: a pessoa engole e inspira a lama, tudo ao mesmo tempo, e em maiores quantidades. Esses movimentos, de inspirar e engolir, são contrações involuntárias do organismo que consistem em fechar a traqueia na tentativa de impedir que a lama chegue aos pulmões. É uma proteção que dura segundos, pois, logo em seguida, a lama inevitavelmente chega aos órgãos. Forma-se um bolo na altura da laringe pela mistura de terra e água que não para de entrar. A garganta vai se fechando, como se estivesse sendo estrangulada. A falta de oxigênio então afeta o cérebro. É tudo muito rápido. Em cerca de trinta segundos, perde-se a consciência, o que poupa a vítima da dor. Morre-se por asfixia dois minutos depois. A garganta, a boca, o nariz e o estômago são tomados pela lama. É possível comparar o fim catastrófico com um afogamento, mas em um nível ainda mais agressivo. Ao contrário da água, a lama é uma mistura viscosa, densa e pegajosa. Obstrui o ar, de maneira inapelável, porque não é facilmente engolida.

A segunda causa de morte das vítimas de Brumadinho foi resultado da força da lama. A avalanche de rejeitos arrastou paredes, telhados e carros. Além disso, a concentração de lama forma uma massa pesada. “O volume e a pressão da lama são violentíssimos. Quebram, dilaceram ou esmagam o corpo”, diz o fisiologista Paulo Zogaib, da Universidade Federal de São Paulo. O esmagamento de órgãos como o cérebro e o intestino, por exemplo, mata antes mesmo da asfixia. A pressão da lama sobre o tórax pode interromper a respiração. Há ainda uma terceira causa de morte comum nessa situação, no caso de a cabeça não ter ficado submersa na lama: a desidratação. Quando uma pessoa fica presa, sem ingestão de líquido e submetida a calor intenso, morre em cinco dias.

(Arte/VEJA)

Entre aqueles resgatados com vida do mar de rejeitos, a observação e o acompanhamento devem ser rigorosos e intensos. Se houve inalação de lama, ainda que pequena, existe o risco de desenvolvimento de um problema respiratório crônico. A lama é um corpo estranho e pode causar a destruição parcial dos pulmões. Nesse caso, passa-se a ter uma limitação da capacidade do órgão. Podem ocorrer pneumonias repetitivas, que precisam ser tratadas com fre­quên­cia. A longo prazo, um pulmão doente pode fazer adoe­cer outros órgãos. Até o coração pode ficar mais fraco, levando à insuficiência cardíaca.

Em tragédias desse porte nunca se devem ignorar os impactos psicológicos — inclusive naqueles que não tiveram contato direto com os destroços. O que acontece com os parentes das vítimas ou com aqueles que testemunharam tamanha desgraça? Uma situação como a de Brumadinho aumenta o risco de stress pós-traumático, uma doença caracterizada pela incapacidade de recuperação após a pessoa experimentar ou presenciar um evento aterrorizante. A lembrança dos mortos, da retirada dos corpos do local e o medo da ruptura de uma nova barragem na região podem desencadear os problemas. Mais: ao longo dos trinta dias que se seguem a eventos catastróficos, é comum que pessoas antes absolutamente saudáveis tenham sintomas de ansiedade ou depressão. Em cerca de 15% dos casos, o problema persiste e exige tratamento com antidepressivos. Diz Marcio Bernik, coordenador do Programa de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP): “Não há dúvida de que os moradores de Brumadinho vão precisar de monitoração e acompanhamento psicológico pelo risco maior de ter doenças mentais”. Um estudo realizado com os moradores sobreviventes do desastre de Mariana mostrou que 30% dos que presenciaram a tragédia sofrem até hoje de depressão — o porcentual é cinco vezes superior ao constatado na média da população brasileira. O transtorno de ansiedade generalizada foi diagnosticado em 32% dos entrevistados. A prevalência também é três vezes maior que a média nacional.

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Não se descarta o risco de contaminação. A análise dos compostos químicos no solo ainda não foi divulgada pela Vale. Mas a preocupação é que a terra e a água estejam contaminadas por minério fino, a sobra dos rejeitos. A Secretaria de Saúde de Minas Gerais publicou nota em que pede que os moradores da região não consumam alimentos que tenham tido contato com a lama, incluindo frutas, legumes e verduras e mesmo enlatados e embalados. Também orientou os moradores a evitar o contato com a água do Rio Paraopeba, atingido pela correnteza de destruição. “A decomposição de material orgânico, como plantas, animais e corpos humanos, produz gases potencialmente tóxicos. Há ainda o risco da leptospirose”, diz o toxicologista Anthony Wong, da USP. Não há dúvida: as marcas para a população de Brumadinho serão duradouras — em alguns casos, eternas.

 

Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620

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