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A resposta rápida da ciência ao combate à variante ômicron

Velocidade de identificação e comunicação do surgimento da nova cepa mostra que o mundo está hoje bem mais preparado para impedir o avanço da Covid-19

Por Cilene Pereira, Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 dez 2021, 10h40 - Publicado em 3 dez 2021, 06h00

“Estamos voando em alta velocidade.” É assim que a virologista Penny Moore, pesquisadora da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, descreve seu ritmo de trabalho nas três últimas semanas. Moore, uma das mais respeitadas especialistas do mundo, integra a força-tarefa de cientistas que detectou, detalhou e anunciou em tempo recorde a identificação da ômicron, a nova variante do coronavírus responsável pela Covid-19. Tudo aconteceu em pouco mais de dez dias. Em 11 de novembro, foram coletadas as primeiras amostras infectadas pela cepa agora descrita. Uma em Gauteng, província sul-africana, e quatro em Botsuana. Na terça-feira 23, o sequenciamento genético da variante já estava disponível. “Encontramos uma cepa com características nunca vistas antes”, disse o biólogo brasileiro Tulio de Oliveira ao colega virologista Alex Sigal naquele dia. Oliveira é diretor do Centro de Respostas e Inovação contra Epidemias da África do Sul. Dois dias depois, ele comunicaria o achado ao presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa. Na sexta-feira 26, a Organização Mundial da Saúde (OMS) batizou a cepa com a 15ª letra do alfabeto grego e a classificou como “variante de preocupação” — tem risco de ser mais transmissível, de causar doença severa e de escapar das defesas criadas pelo sistema imunológico.

A incrível velocidade com que a ômicron foi do monitoramento à classificação pela OMS é um marco histórico — mais uma vitória da ciência obtida durante os dois anos de pandemia. E revela, felizmente, que o sistema de vigilância e comunicação a respeito de mudanças decisivas no coronavírus funciona bem e com agilidade. Para efeito de comparação, a variante alfa, documentada no Reino Unido em setembro de 2020, passou a ser tratada como cepa de preocupação apenas em dezembro, três meses depois. A beta, identificada na África do Sul em maio daquele ano, também receberia a designação somente no fim do ano. As primeiras amostras com a gama, cepa que levou Manaus ao colapso em janeiro de 2021, foram coletadas em novembro do ano anterior. A classificação de cepa preocupante veio somente no primeiro mês deste ano, quando já causava horror no estado do Amazonas.

O primeiro fator a contribuir para a rapidez das análises é a extensa rede de troca de informações científicas construída nos últimos vinte meses. A urgência em conhecer mais sobre o SARS-CoV-2 levou a comunidade mundial de pesquisadores a criar espaços de compartilhamento de dados coletados globalmente, grande parte deles sobre a genética do vírus. Essas redes são fundamentais, como acaba de ficar claro no exemplo da ômicron. Se elas não fossem tão abrangentes, talvez ainda não soubéssemos da existência da variante. A cronologia científica é, insista-se, uma aventura fascinante. Em 23 de novembro, cientistas de Botsuana carregaram em uma das plataformas de dados 99 sequenciamentos do vírus. A maioria era material genético da delta, dominante no continente africano. Três eram diferentes. Mais tarde, naquele mesmo dia, a equipe da África do Sul subiu na plataforma sete retratos genéticos idênticos aos três publicados pouco antes. Em questão de horas, já se sabia que acabara de surgir uma variante.

VIGILÂNCIA - Testes e mais testes: estratégia da África do Sul de monitorar a evolução do vírus -
VIGILÂNCIA - Testes e mais testes: estratégia da África do Sul de monitorar a evolução do vírus – (Emmanuel Croset/AFP)

O que aconteceu depois também foi diferente do que se tinha visto até agora. Desde a disseminação da primeira geração do coronavírus até que a OMS decretasse a pandemia, em março de 2020, se passaram três meses. Na semana passada, bastaram poucas horas para que a entidade informasse o mundo sobre a ômicron. O informe permitiu que nações agissem rapidamente, impondo restrições à entrada de pessoas vindas dos países onde a variante já circulava e reforçando as proteções internas para a identificação de casos. A movimentação inicial, é verdade, talvez exagerada, provocou pânico. Em aeroportos da Ásia e Europa viam-se pessoas protegidas com macacão de plástico dos pés à cabeça. Infectados que desembarcaram na Holanda, vindos da África, foram isolados com estardalhaço. No entanto, passado o alarme, vencido o susto, o que sobrou foi a certeza de que o mundo está hoje mais bem preparado para o enfrentamento do vírus. E isso é muito bom.

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PRECAUÇÃO - Direto para o hospital: na Holanda, isolamento dos infectados -
PRECAUÇÃO - Direto para o hospital: na Holanda, isolamento dos infectados – (Laurens Bosch/ANP/AFP)

Afinal, o SARS-CoV-2 veio para ficar. E, como disse Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, vírus mudam. “É o que eles fazem”, sintetizou. Algumas variantes permanecem, outras desaparecem. E assim será com o coronavírus. Faz parte do jogo. Em geral, a primeira versão de um vírus pandêmico, a selvagem, surge causando alta mortalidade e menor taxa de transmissibilidade. Ao longo do tempo, emergem cepas mais transmissíveis, porém menos letais. “É um ciclo de adaptação”, resume o virologista Amilcar Tanuri, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por isso, o que cabe aos humanos, seus hospedeiros, é manter redes de vigilância azeitadas e sistemas de contenção que envolvam todas as nações. Como se sabe também, microrganismos não respeitam fronteiras. Daí a importância da iniciativa da OMS, anunciada na quarta-feira 1º, de formular um tratado que estabeleça medidas para uma resposta global e volumosa em futuras pandemias. A previsão é que o documento esteja pronto em 2024, pacote vital de aprendizado tirado da tragédia da pandemia.

arte Ômicron

Enquanto os esforços diplomáticos de distribuição de vacinas e de controle de fronteiras evoluem — espera-se! —, a ciência corre contra o relógio para decifrar a ômicron. O que se sabe até hoje é pouco para que seja possível tirar qualquer conclusão neste momento. A variante tem cinquenta mutações (maior número registrado até agora), 32 delas localizadas na spike, a proteína que o coronavírus usa para invadir as células humanas. É sobre essas 32 alterações que repousam os temores dos pesquisadores. Elas estão associadas ao grau de transmissibilidade do vírus e à sua capacidade de provocar doença grave e de fugir das defesas criadas pelo sistema imunológico. Segundo a OMS, dados preliminares sugerem que a cepa seria bem mais transmissível — a rápida elevação de casos na África do Sul justifica a suspeita — e propensa a escapar da proteção oferecida pelas vacinas. Por ora, são apenas evidências sem confirmação em laboratório. Os cientistas prometem apresentar as explicações que o mundo aguarda dentro de duas semanas.

Antes mesmo desse prazo, no entanto, as indústrias farmacêuticas já iniciaram os estudos para verificar se os imunizantes por elas produzidos têm eficácia contra a nova variante. A Pfizer e a BioNTech esperam ter resultados ainda neste mês. Porém adiantaram que necessitariam de seis semanas para desenvolver uma alternativa que englobe a ômicron, além de 100 dias para sua produção. A AstraZeneca, em conjunto com a Universidade de Oxford, informou que sua vacina demonstrou eficácia contra as demais cepas de preocupação, indicador de que poderia funcionar contra a ômicron.

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CHECAGEM - Ponto de parada: o laboratório do Hospital Albert Einstein em Guarulhos coletou amostras de contaminados -
CHECAGEM - Ponto de parada: o laboratório do Hospital Albert Einstein em Guarulhos coletou amostras de contaminados – (Yuri Murakami/Fotoarena/.)

Até a quinta-feira 2, a variante havia sido registrada em 29 países, incluindo o Brasil. Boa parte dos infectados tinha sido imunizada, como os três indivíduos que estavam em isolamento em São Paulo. Isto não significa de maneira alguma que as vacinas sejam inócuas contra a cepa. Em primeiro lugar, sabe-se que elas não impedem a contaminação pelo vírus com total eficiência. O que as vacinas fazem, e muito bem, é impedir que o coronavírus provoque formas graves de Covid-19. Até onde se observou, os casos provocados pela nova variante ou eram assintomáticos ou apresentavam sintomas leves — atalho para otimismo.

CONTRA O RELÓGIO - Pesquisa: Oliveira coordena o time que detectou a cepa -
CONTRA O RELÓGIO - Pesquisa: Oliveira coordena o time que detectou a cepa – (Joao Silva/The New York Times/Fotoarena/.)

O que é necessário, isso sim, é ampliar a cobertura de vacinação, alcançando as regiões onde os índices de imunização estão ainda baixos. Atualmente, o alcance é muito desigual. Enquanto os demais continentes superam 60% da população com ao menos uma dose da vacina, a África tem 11%, dos quais apenas 7,3% estão completamente imunizados, segundo dados da Our World in Data. “É preciso ter equidade na distribuição das vacinas. Nada adianta vacinar 80% da população de Israel, chegar a 90% do Brasil e ter 10% em outros países”, diz o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas e professor visitante da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. “O enfrentamento precisa ser coletivo e não individualizado.” Do ponto de vista da vacinação, o Brasil está em uma situação confortável. O país tem a maior taxa de aceitação dos imunizantes entre as nações da América Latina e a campanha progride bem. No entanto, peca-se demais na falta de apoio à ciência, alimentada pelo governo de Jair Bolsonaro, o único meio capaz de prover as informações necessárias para o combate do vírus. Na área de sequenciamento genético, por exemplo, parte do sucesso é fruto de empenho pessoal. Quando a Covid-19 apareceu, o time da professora Ester Sabino, da Faculdade de Medicina da USP, decifrou o genoma do vírus em 48 horas. Um belíssimo feito, espelho da qualidade dos cientistas. Em 2021, no Brasil foram realizados mais de 40 000 sequenciamentos. Poderíamos, contudo, ter feito mais. “O problema é a falta de recursos”, lamenta a pesquisadora. Já passou da hora de o país entender que, sem ciência, não há futuro — com ou sem pandemia.

Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767

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