A frágil fronteira da razão
Portadores do transtorno de personalidade conhecido como borderline são excessivamente impulsivos, intolerantes e não suportam o abandono
Olhos claros, entre o azul e o verde, cabelos castanhos e pele branca, Marina, de 29 anos, é portadora do transtorno borderline desde a adolescência. No depoimento abaixo, descreve como se sente quando passa por uma crise:
“Quando entro numa crise, o que mais me incomoda é a sensação de não existir. É como se não houvesse motivos pra eu viver. Um vazio, uma angústia. Nada ao meu redor parece ter cor. Tudo é cinza. Sinto as coisas em câmera lenta. No entanto, meus pensamentos ficam exageradamente rápidos. Sinto uma grande ansiedade, uma incômoda agitação interna. Minha mente fica tão acelerada que, depois do fim da crise, sobra uma grande confusão mental. Algumas vezes, chego a esquecer das situações que passei. Em outras, não consigo identificar se aquilo aconteceu ou se foi um sonho. Mesmo a noção de tempo parece confusa. É como se estivesse em queda livre, num buraco escuro, frio, úmido, sem fim, com muitas imagens passando pelos meus olhos e vozes e sons, vários, zumbindo nos meus ouvidos sem parar. Procuro evitar aquela avalanche de informação, agarrar-me em alguma coisa. Mas não consigo encontrar nada para me amparar. Fico verbalmente agressiva, irritada com qualquer um ou qualquer coisa, impaciente. Sinto-me atacada, invadida a todo momento e, então, ataco de volta. Existe uma variação muito grande de humor. Pelo menos comigo, em toda crise, o pensamento de suicídio é recorrente. E a sensação de falta de esperança também. As duas piores coisas ao sair de uma crise são a vergonha e o medo da recaída”.
Gustavo, de 26 anos, saltou o muro de um estacionamento em São Paulo, entrou no carro e, ao perceber que estava trancado, acelerou na direção do portão. Ele é excessivamente impulsivo. No dia em que a namorada se recusou a dormir em seu apartamento, estilhaçou uma janela de vidro com o punho. Ele é intolerante. Quando terminou outro relacionamento, Gustavo quis se matar. Ele não suporta o abandono. Depois de uma briga com o pai, tentou enforcar-se com uma linha de nylon. Gustavo sofre demais. A soma dessas características indicam que ele é, sobretudo, uma pessoa doente. Diagnosticado no fim de 2010, tem transtorno de personalidade limítrofe, ou, na sigla em inglês, borderline.
Os sintomas indicam que era essa a doença da advogada Giovana Mathias Manzano, de 35 anos, cujo drama foi revelado numa reportagem de VEJA publicada na edição de 13 de julho. Giovana foi encontrada morta em Penápolis, no interior de São Paulo, depois de ter encomendado o próprio assassinato. Sem coragem para cometer suicídio, a advogada contratou um pistoleiro que disparou três tiros contra sua cabeça. Um médico da cidade chegou a classificá-la como portadora do transtorno borderline, mas o diagnóstico não foi unânime entre os especialistas.
Embora o termo borderline (a palavra significa “fronteiriço”) tenha sido cunhado em 1938 pelo psicanalista americano Adolph Stern – ele concluiu que os pacientes portadores de tal transtorno psiquiátrico estavam no limite entre a neurose e a psicose -, foi só na década de 1980 que o diagnóstico da doença se tornou mais preciso. Até então, muitos médicos acreditavam, equivocadamente, que a personalidade de uma pessoa era imutável.
Ao estudar imagens do cérebro e fazer testes em animais, o psiquiatra americano Robert Cloninger provou que a personalidade é a união entre o temperamento e o caráter. “O temperamento é herdado”, explica o psiquiatra Erlei Sassi, coordenador do Ambulatório dos Transtornos de Personalidade e do Impulso do Hospital das Clínicas (leia a entrevista). “Filho de Pittbull tem tudo para ser um pittbulzinho. Já o caráter é relacionado ao aprendizado, é formado pelo ambiente em que a pessoa vive”. De acordo com Sassi, que estuda o transtorno borderline há 15 anos, o conflito entre o temperamento e o caráter pode gerar uma personalidade problemática. É o caso, por exemplo, de uma criança extremamente perfeccionista que cresce em uma família desorganizada. O convívio levaria a uma frustração constante.
A personalidade começa a ser formada entre o fim da adolescência e o começo da idade adulta. “É nesse momento que os primeiros sintomas de um borderline costumam aparecer”, conta Sassi. O comportamento de uma pessoa, informa o psiquiatra, só configura um transtorno a partir do momento em que o indivíduo gera sofrimento para si e para os outros.
Neste ano, Gustavo tentou suicidar-se quatro vezes. Os braços riscados por cicatrizes evidenciam um dos mais aflitivos sintomas da doença: a autoflagelação. Há quatro meses, por volta das 4 horas da madrugada, deitado na cama, o rapaz telefonou para a mãe, que dormia no quarto vizinho. “Desta vez, acho que eu vou”, disse, com voz pastosa. Ela se levantou num pulo e correu para socorrer o filho. A cena assustou. Ele estava prostrado sobre uma poça de sangue. Os pulsos mutilados e as cartelas vazias do ansiolítico alprazolam caracterizavam a quarta e última tentativa de suicidio.
A versão mais recente do Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM-IV) – o guia das doenças psiquiátricas publicado pela Associação Americana de Psiquiatria -, descreve o transtorno borderline com nove sintomas: esforços desmedidos para evitar um abandono real ou imaginado; relações interpessoais instáveis e intensas; autoimagem instável; impulsividade em excesso; automutilação e tentativas recorrentes de suicídio; mudanças de humor constantes e extremas; sentimentos crônicos de vazio; acessos incontroláveis de raiva sem motivos aparentes; e episódios de paranoia. Os mesmos sintomas são apontados pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10), publicação da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A família – Para familiares, amigos e leigos, o sofrimento que leva um borderliner a tentar se matar é incompreensível. Segundo Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, a automutilação e o suicídio são maneiras que ele encontra para extravasar um sofrimento insuportável. “O boderliner não suporta ficar só”, explica. “Faz qualquer esforço para não ser abandonado e está sempre se queixando de vazio, de uma falta de sentimento de identidade”. Fernanda Martins, psiquiatra e médica-assistente do Ambulatório dos Transtornos de Personalidade do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, conta que a família do borderliner enfrenta uma dor tão terrível quanto a do paciente.
Desde as últimas crises de Gustavo, qualquer barulho estranho dentro de casa faz com que sua mãe, Tereza, interrompa a respiração involuntariamente. Falta ar. Ela passou a acordar tarde, a deixar compromissos de lado e a fumar. Não dorme enquanto o filho permanece acordado. O som dos passos durante a noite, o ruído acelerado das teclas do computador, o toque característico do celular, tudo que emerge de Gustavo aflige Tereza, que decidiu grudar pequenos folhetos com orações pelas paredes do apartamento. Enquanto assistia ao filme 2012, uma ficção que descreve como seria o apocalipse, um irmão de Gustavo notou que a mãe parecia simpatizar com a ideia do mundo acabar no próximo ano.
Gustavo passou por uma dezena de psiquiatras e psicólogos até descobrir do que sofria. O diagnóstico de transtorno borderline demorou quatro anos. Hoje, o rapaz se concentra no tratamento com remédios e psicoterapia. Há seis meses, não passa por uma crise.
A Cura – “Os borderliners melhoram com a idade”, afirma o psicanalista Mauro Hegenberg, autor do livro Borderline. Fernanda Martins reforça a tese: “Os sintomas tornam-se mais amenos depois dos 40 anos”, diz. “Mas se o paciente não for tratado, quando chega a essa idade não se casou, não teve filhos, não se formou, não parou em nenhum trabalho. Tem uma vida tão vazia que acaba caindo em depressão”. Com tratamento, é possível – e muito provável – controlar os sintomas até que desapareçam.
Hegenberg observa que o diagnóstico do borderline é complexo. “O psiquiatra que se baseia apenas nos sintomas incluídos no DSM pode errar”, diz. “É comum confundirem a doença com o transtorno bipolar, por exemplo”. Além do diagnóstico difícil, os médicos precisam saber lidar com os pacientes. “É um atendimento que demanda muita energia”, observa Hegenberg. “Você tem que deixar o celular ligado e estar à disposição 24 horas por dia. Já atendi a muitos telefonemas de pacientes que estavam à beira de um suicídio”. Por que decidiu especializar-se num transtorno tão complexo? “O borderliner é muito cativante”, explica Hegenberg. “São pessoas interessantes, inteligentes, cheias de vida e com uma personalidade extremamente sedutora”.
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