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Vidas ao léu

Coluna publicada em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 4 Maio 2018, 06h00 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00

Ricardo, ou “Tatuagem”, como de início o identificaram, é o personagem que ficará como emblema do incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. “Tatuagem”, assim chamado porque em seus braços mal se via pele, é o moço que, pendurado no pára-­raios do 15º andar do prédio, e já amarrado a uma corda, estava a ponto de ser salvo pelos bombeiros quando sobreveio o último ato da catástrofe. Uma cascata de fogo cobriu o edifício, arrebatou andar por andar, arrastou tudo o que havia dentro ou pendurado fora — ele inclusive — e não sobraram senão ruínas. A Tatuagem coube o destino de entrar em cena e sumir em seguida. A imagem de sua desdita, mostrada mil vezes na TV, na tela do celular ou do computador, ficará como seu momento único de protagonismo neste mundo.

Soube-se horas depois que se chamava Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, e tinha 39 anos. Outros detalhes foram colhidos por repórteres e cinegrafistas entre os que o conheceram. Morava no 9º andar, segundo o primo que, chorando, buscava notícias. Vivia de descarregar mercadorias no bairro do Brás. Percorria as ruas do centro de patins. Costumava emprestar os patins às crianças. O perfil que emerge é de pessoa afável e prestativa. Deflagrado o incêndio, dedicou-se a ajudar os vizinhos a evacuar o prédio. Subiu e desceu andares repetidas vezes. Orientou idosos e conduziu crianças. Se tivesse saído logo, estaria ainda vivo — e livre da curiosidade que alguém pudesse ter por traçar seu perfil. Morreu como herói.

Os moradores do prédio integram uma massa de migrantes dentro da própria cidade

O incêndio seguido de desabamento do edifício do Largo do Paissandu escancarou o que se passava ali dentro. Trezentas e vinte pessoas registradas como moradores. Espaços concebidos para uso comercial divididos com tabiques para separar os inquilinos. Instalações elétricas improvisadas, abastecidas por um “gato” puxado de um semáforo, a fiação passando por fora do prédio. Vinte e dois andares e ausência de elevador. Aluguel variando de 100 a 500 reais cobrado dos moradores pela organização que coordenava a ocupação, Movimento de Luta Social por Moradia. Escancarou-se a existência de organizações oportunistas entre as que militam pelos sem-teto.

Um pouco de história. Nas origens de São Paulo, o hoje Largo do Paissandu era o “Campo do Zuniga (ou Zunega)”, nome do proprietário da área. O local também era conhecido como “Tanque do Zuniga (Zunega)”, por causa da mina de água ali existente, uma das fontes de abastecimento da povoação. Outro nome era “Alagoas”, fácil de presumir que em consequência dos alagamentos causados pelo tanque. O que séculos atrás foi área encharcada virou na semana passada festa do fogo. O nome Paissandu, numa época em que a urbanização já chegava à região, vem da cidade uruguaia tomada pelos brasileiros nos primórdios da Guerra do Paraguai.

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Outro pouco de história. A iniciativa de levantar o Edifício Wilton Paes de Almeida, uma torre de vidro desenhada pelo arquiteto sírio-brasileiro Roger Zmekhol, foi do empresário Sebastião Pais de Almeida, naquele tempo um dos maiores do país, além de titular de cargos públicos como presidente do Banco do Brasil, ministro da Fazenda (governo Juscelino Kubitschek) e deputado federal. No edifício, inaugurado em 1966, e a que deu o nome do irmão mais velho, instalou a sede da principal de suas empresas, a Companhia de Vidros do Brasil (CVB). Já próspera, a empresa conhecera impulso ainda maior à época da construção de Brasília. A carreira pública de Pais de Almeida, considerado “inimigo da Revolução”, encerrou-se no regime militar. Os inimigos da UDN o acusavam de corrupção e o identificavam a outro Sebastião, chefe de famoso assalto a um trem pagador. A carreira empresarial entrou em declínio e, em 1980, as dívidas do grupo levaram à tomada do edifício pelo governo federal. O derretimento do prédio é uma nota de pé de página à sua derrocada.

A flutuante população do Edifício Wilton Paes de Almeida integra uma massa de migrantes que, na maioria vinda de outro país ou outra cidade, continua migrante na própria cidade, de abrigo em abrigo, ocupação em ocupação, favor em favor. Vive-se ao léu, num êxodo permanente. Um quarto dos moradores era de estrangeiros — angolanos, congoleses, peruanos. A menina Gabrielle Victoria, de 5 anos, que chegara com a mãe do Recife havia três dias, resumiu com precisão ao Jornal Nacional o novo colapso em sua pequena vida: “Mainha chorando, o fogo, todas as casas, queimou”. O desabamento do prédio do Largo do Paissandu lançou o holofote a um pedaço do Brasil real que pede resposta urgente.

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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