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Vida longa à liberdade

O clima de intolerância ideológica fez reemergir a censura no ano que se encerra. E a ameaça permanece

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 dez 2017, 06h00 - Publicado em 22 dez 2017, 06h00

A censura, no singular, não vigora mais no Brasil. Não se admite mais uma política de Estado centralizada e autocrática para regular o que pode ou não pode ser dito, lido, cantado. No passado ficaram os discos de MPB com faixas instrumentais porque as letras foram proibidas e os jornais com versos de Camões no lugar das notícias vetadas. No entanto, ainda vicejam, na sociedade brasileira, censuras — no plural — dispersas, setorizadas e fragmentárias, excercidas não mais diretamente pelo governo, mas por grupos de pressão, comumente chamados, com boa razão, de “patrulhas”. Em 2017, os novos censores mostraram seu poder, não menos arbitrário e estulto do que o carimbo de Solange Hernandes, célebre titular da Divisão de Censura.

Por força de manifestações e abaixo-assinados, grupos religiosos e políticos levaram o Santander a fechar, em setembro, a exposição Queermuseu, em cartaz no instituto cultural do banco, em Porto Alegre. Houve quem argumentasse não se tratar de censura, pois a mão pesada do Estado não havia baixado sobre a mostra. Mas que uma patrulha tenha usado sua influência não para criticar a arte que julgava ruim ou imoral, mas para fechar a exposição, configura, sim, um ato censório. O canhestro moralismo na avaliação da arte exibido pelo Movimento Brasil Livre — o principal promotor e propagador das ações contra a Queermuseu — repetiu-se nas manifestações histriônicas que cercaram o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, depois que se divulgou o vídeo da performance La Bête, na qual o artista Wagner Schwartz, nu, foi tocado, na perna, por uma criança. Veio a grita desproporcional: pedofilia! A presença do ex-ator pornô Alexandre Frota conferiu certo ar folclórico aos protestos. Mas nem por isso se devem desprezar as repercussões políticas e legais que podem resultar daí. Há gente muito folclórica também no Congresso Nacional, que já ensaia, para 2018, tentativas de cercear a liberdade de expressão consagrada pela Constituição de 1988.

No Senado, a CPI dos Maus-Tratos, sob o comando do senador Magno Malta (PR), tentou conferir autoridade às acusações despropositadas de pedofilia lançadas contra a Queermuseu e o MAM. Sob os auspícios de Malta, há um projeto de lei no Senado que endurece a classificação etária para mostras de arte. Na Câmara dos Deputados, um projeto do inacreditável Marco Feliciano (PSC) vai ainda mais longe: busca incluir no Estatuto da Criança e do Adolescente uma esdrúxula disposição que proíbe filmes, programas de TV, DVDs, espetáculos de circo, shows de música, peças teatrais e até videogames que “profanem símbolos sagrados”. Na justificativa do projeto, alude-se à Queermuseu, que teria exibido “arte profana” (sic). Em outro triste episódio de censura de 2017, uma peça em que Jesus era interpretado pela atriz trans Renata Carvalho teve a exibição proibida, em Jundiaí, São Paulo, pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior. As reivindicações de proteção especial para a sensibilidade religiosa expressas pelo projeto do deputado e pela decisão do juiz teriam o potencial de banir obras fundamentais da cultura ocidental — de episódios do Decameron aos livros de Nietzsche, para não falar em textos religiosos canônicos que definem as outras fés como idolatria.

Guerra cultural – Em Porto Alegre, manifestantes protestam contra a censura à exposição Queermuseu: não é a arte que está sendo perseguida ou “criminalizada”. O que se quer calar são certas ideias controversas sobre sexualidade (Cau Guebo/Raw Image/Estadão Conteúdo)

Para se precaver contra protestos ruidosos e intimidatórios, o Masp, em decisão inédita em sua história, classificou a mostra Histórias da Sexualidade como imprópria para menores de 18 anos. A estratégia funcionou, esfriando os ânimos censórios do MBL e associados. O campo dos que se opõem à censura mobilizou-se: o #342Artes, grupo de medalhões da arte nacional — incluindo membros do Procure Saber, grupo de músicos que em 2013 se mobilizou pela censura prévia (eles rejeitam a palavra, mas é disso que se tratava) a biografias —, fez manifestações de rua e divulgou vídeos com Fernanda Montenegro e outros famosos defendendo a liberdade artística. Em Belo Horizonte, onde também houve protestos de grupos religiosos contra uma exposição — Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina, de Pedro Moraleida, no Palácio das Artes —, montou-se a Frente Nacional contra a Censura, que já tem representações em treze estados e promete, em 2018, vigilância contra projetos de lei, em âmbito municipal, estadual e federal, que busquem cercear a liberdade de expressão. A depender de congressistas como Magno Malta e Marco Feliciano, terá muito trabalho.

Artistas ligados a esses movimentos contra a censura vêm repetindo a ideia de que está em curso uma perseguição particular contra seu ofício. “Criminalização da arte” tornou-se clichê nos vídeos do #342Artes. É uma avaliação errônea do problema. A americana Judith Butler, que tem se dedicado às chamadas questões de gênero, não é artista, mas filósofa — e também houve abaixo-assinados e manifestações contra a palestra que ela deu em São Paulo, em novembro (ao deixar o país, a acadêmica foi acossada agressivamente por manifestantes no Aeroporto de Congonhas). E é preciso pontuar que a sanha censória não perseguiu a arte em geral, mas apenas exposições que tratam de temas sensíveis ao debate sobre sexualidade, em particular aquelas que abraçam as pautas LGBT.

Militância histriônica – Protestos contra La Bête, performance no MAM de São Paulo: uma criança tocou na perna de um artista nu, sem erotismo, e daí surgiu a grita de “pedofilia”, senha para muita demagogia no Congresso Nacional (Renato S. Cerqueira/Futura Press/Estadão Conteúdo)

O que se encena nessas controvérsias absurdas sobre “apologia da pedofilia” e quejandos é um lance do que já se chamou de “guerra cultural” entre posições progressistas e conservadoras cada vez mais radicalizadas e infensas ao diálogo. O fechamento da Queermuseu foi o episódio mais bombástico nessa guerra de propaganda, e não é por nada que o MBL o tenha comemorado como uma “vitória da pressão popular”. O “outro lado”, porém, tem-se mostrado capaz de ações que, embora menos vistosas, foram igualmente autoritárias (e passaram em geral negligenciadas pelos grupos que dizem defender a liberdade de expressão). Em maio, o Festival de Cine PE, no Recife, teve de ser adiado porque sete cineastas participantes o boicotaram. Rejeitavam a exibição, no mesmo evento, de O Jardim das Aflições, documentário de Josias Teófilo, sobre o guru conservador Olavo de Carvalho. Sim, podem-se criticar o filme e seu objeto — mas pedir sua cabal exclusão é referendar a censura. Uma sessão do mesmo filme na Universidade Federal de Pernambuco, em outubro, foi tumultuada quando militantes de esquerda investiram com truculência contra os espectadores, gritando que para “fascistas” só se pode oferecer a “ponta do fuzil”.

O ano eleitoral tem tudo para inflamar ainda mais o extremismo intolerante. Os dois candidatos que vêm despontando à frente da pesquisa representam, afinal, versões arrogantes e rancorosas da esquerda e da direita. Nem Lula, que mais de uma vez demonstrou simpatia pelo controle sobre a imprensa, nem Bolsonaro, entusiasta da ditadura militar, professam respeito pela liberdade de expressão. Novos episódios de censura pela força de minorias agressivas podem estar no horizonte. A única saída para os impasses que a intolerância ideológica cria, no entanto, está na discussão de ideias. Discussão candente, sim, até inflamada quando necessário — mas, antes de tudo, livre.

Com reportagem de Eduardo F. Filho

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Publicado em VEJA de 27 de dezembro de 2017, edição nº 2562

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