Vitória (Judi Dench), quase octogenária e de plena posse do seu mau humor imperioso, enfia a comida na boca às colheradas cheias, sem notar o excesso que lhe corre pelo queixo. Os convivas apressam-se para acompanhar a rainha: quando ela termina um prato, os valetes removem a sopa, o peixe ou a carne de debaixo do nariz dos nobres. Já pronta a deixar a mesa, Vitória é instada a permanecer, para receber uma medalha vinda da Índia, a joia do seu império colonial. A soberana bufa, impaciente. Mas então alguém atrai o seu olhar: um dos dois hindus em traje de gala recrutados para a cerimônia. Abdul Karim (Ali Fazal), então com 30 e poucos anos, era alto, bonito e carismático. Sabia também se insinuar. Logo o escrivão de passado humilde (que ele tratou de enfeitar) estava instalado na corte. Para horror dos ministros e parentes reais, ele ensinava urdu a Vitória, contava-lhe coisas da colônia na qual ela nunca pusera os pés e ficava ao seu lado até enquanto ela despachava. Mais do que tudo, Karim afagava seu ego e aliviava sua solidão. Não qualquer solidão, mas o seu desejo de companhia masculina. O reino de Vitória, entre 1837 e 1901, passou à imaginação popular como uma era de repressão, rigidez e pudor. Mas, como lembra Victoria e Abdul — O Confidente da Rainha (Victoria and Abdul, Inglaterra, 2017), já em cartaz no país, a própria rainha era às vezes passional — e sempre, até seus últimos dias, adorou a companhia de homens valentes o suficiente para devotar-se a ela e, ao mesmo tempo, enfrentá-la.
O filme, dirigido por Stephen Frears, prefere a composição anedótica ao exame de personagem; a essa altura da vida, Vitória já se cristalizara num amontoado de manias que exasperavam os que tinham de lidar com ela, mas rendem graça folclórica ao enredo. Frears e Judi, porém, captam algo essencial — a eletricidade que a rainha propagava quando estava perto de Karim, ou de homens dos quais emanava essa facilidade no trato com ela. Vitória a sentira pela primeira vez aos 18 anos, quando, ao sagrar-se rainha e se ver livre do controle feroz de sua mãe e do conselheiro dela, tornara o primeiro-ministro Lorde Melbourne seu mentor político — um relacionamento deliciosamente detalhado na série inglesa Vitória — A Vida de uma Rainha. Décadas mais tarde, encontrou de novo essa vibração no cavalariço escocês John Brown, um tipo arretado, que a tirou do luto impenetrável da sua viuvez — um episódio narrado com entusiasmo em Sua Majestade, Mrs. Brown, filme de 1997, em que Judi Dench pela primeira vez encarnou a rainha. E ninguém, é claro, arrebatou Vitória como o príncipe Albert de Saxe-Coburg Gotha, o primo que ela estava determinada a recusar para assim frustrar os casamenteiros do lado alemão da família.
Vitória costumava ser de uma teimosia exemplar — mas, ao pôr os olhos no primo, que foi visitá-la assim que ela herdou o trono, sua obstinação se desfez em amor à primeira vista, do tipo mútuo e recíproco. Ainda assim, a rainha demorou três anos para fazer o pedido de casamento (que, pelo protocolo, cabia a ela): estava divertindo-se demais com sua independência. A história dá muito crédito aos instintos certeiros de Vitória para exercer o poder. E, no primo alemão, ela de fato escolheu um parceiro à sua altura.
Galante, bem-apessoado e seriíssimo, com um horror teutônico à frivolidade, Albert encorajou a esposa a interessar-se pela ciência, pela arte, pela criação de uma infraestrutura de engenharia e transportes e pela assistência social. O príncipe não tinha pejo em contradizer Vitória, expor as fraquezas dos seus planos ou entrar em brigas escaldantes. E, desde que as turras se passassem em privado, Vitória valorizava a franqueza do marido. São amplas as evidências de que os nove filhos do casal nada tiveram a ver com obrigação sucessória — foram fruto do desejo mesmo. Vitória, aliás, ressentia-se das suas gestações, e demorava a se interessar pelos bebês. Cada gravidez significava uma nova oportunidade de Albert substituí-la nas suas obrigações — algo que Vitória apreciava e detestava em igual medida.
Há quem interprete que Vitória procurava, nessas figuras masculinas fortes, o pai, que morreu antes de ela completar 1 ano. Trata-se de uma leitura simplista e redutiva. Talvez por temperamento e certamente por circunstância, ela tirava prazer genuíno de medir forças com as poucas pessoas resistentes à sua capacidade de intimidar. Destinada ao trono por uma espécie de acidente dinástico (era filha do quarto filho do rei George III) e criada em reclusão, Vitória era inexperiente e jovem ao ponto de se tornar um risco para a monarquia. Era também tão baixinha (uma lasca acima de 1,50 metro) e miúda que a corte ria dela em sua cara. O pior de tudo, aos olhos da época: era mulher. Transpor essas objeções exigiu dela fibra de aço, e também gosto pela refrega. Assim, ainda que a ideia de uma Vitória apaixonada entre em choque com a imagem que ficou dela — da senhora obesa e carrancuda, vestida em preto fechado —, essa Vitória vetusta é o vestígio da jovem ardorosa. Albert morreu aos 42 anos, em 1861, e a rainha caiu em tal depressão que palavras como “abdicação” e “regência” já circulavam. John Brown e depois Abdul Karim reavivaram seu espírito — e ajudaram a salvar um reinado de fazer história.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557