Qual a capital do Brasil? A resposta, óbvia para todo brasileiro que passou pela escola, é inapreensível para quem vive a insólita condição de Dom Sabino. Na novela O Tempo Não Para, o comendador passou 132 anos congelado em um iceberg, saindo da São Paulo rural e escravocrata de 1886 direto para a metrópole de 2018. “Brasília? Tivemos uma escrava com esse nome. Odiava trabalhar. Brasília era dada a intrigas, conchavos, só queria saber de sombra e água fresca”, diz o personagem de Edson Celulari ao ser informado de que a capital nacional não é mais o Rio de Janeiro do Império. Sua filha Marocas (Juliana Paiva) é igualmente uma mocinha improvável na atual paisagem urbana: anda pelas ruas num longo e recatado vestido cheio de babados, enquanto o pai enverga fraque, cartola e uma juba com suíças. Ainda que seja uma dama do século XIX, Marocas capta com sagacidade as aflições dos brasileiros contemporâneos. Tome-se sua primeira impressão sobre os congestionamentos paulistanos: “Só se vê um condutor em cada veículo. Olha o tamanho deste maquinário para apenas uma pessoa. Isso não faz o menor sentido”.
Tiradas assim resumem o espírito da nova trama das 7 da Globo. O Tempo Não Para, de autoria de Mario Teixeira, parte de uma premissa despudoradamente maluca. Dom Sabino era um rico empreendedor e proprietário de terras na Freguesia do Ó quando o hoje populoso bairro paulistano consistia em um naco de Mata Atlântica às margens de um limpo (sim, limpo) Rio Tietê. Certo dia, Dom Sabino embarca, com a família e escravos, rumo à Europa. Antes, porém, a turma dá uma esticada até o sul para curtir a gelada Patagônia. Antecipando o Titanic, o navio é atingido por um iceberg e afunda. Os personagens acabam congelados e reaparecem mais de um século depois, numa praia do… Guarujá. Está confuso? Tem mais. Resgatada pelo surfista Samuca (Nicolas Prattes), Marocas desgarra-se dos outros congelados, mas os reencontra nas câmaras criogênicas do laboratório do governo comandado por uma cientista vivida por Eva Wilma (sim, Eva Wilma). As liberdades fantasiosas vão longe, mas Teixeira — em sua primeira novela-solo original, aos 49 anos — dota a absurda mistura de comédia e ficção científica de tanta graça e nonsense que se produz um milagre: a geringonça dá liga.
No ar há apenas quatro semanas, O Tempo Não Para já ostenta índices de audiência perto de 30 pontos na Grande São Paulo. Para além da boa repercussão, vem se revelando um espécime incomum: uma novela inteligente. “Ao ler a sinopse, gostei da originalidade e do frescor das ideias”, diz Silvio de Abreu, diretor de dramaturgia da Globo. Boas sacadas de humor vêm do choque dos personagens do passado diante de banalidades que desconheciam, como a eletricidade, o automóvel e os arranha-céus. Eles se arrepiam também com os costumes modernos, de rapazes usando bermudas a casais beijando-se. Façanha não menos notável, o português vetusto dos viajantes no tempo, com bordões como “deveras!” e “chalaça boa”, caiu na boca do povo. “As pessoas se encantam com a prosódia do século XIX. Para mim, é surpreendente, confesso”, diz Edson Celulari.
O enredo irrealista funciona como pretexto para falar, sobretudo, de problemas e contradições concretos da vida nacional. “Por meio do espanto e da indignação dos personagens, eu queria expor o que as pessoas estão sentindo no país de hoje”, diz Teixeira. O excesso de carros horroriza Marocas e Dom Sabino — que foi amigo do visconde de Mauá e entusiasta das ferrovias. Eis a ironia: da sua perspectiva de forasteiros do tempo, eles enxergam as mazelas da nação, da falta de trens à corrupção, com mais lucidez que as pessoas do presente.
O êxito da novela representa uma bela volta por cima de Celulari, que retorna à ativa com tudo após enfrentar o tratamento contra um câncer linfático, em 2016. “É um teste árduo para meu físico. Mas, aos 60 anos, estou me sentindo com muita energia”, diz o ator. Dom Sabino é um tipo que já nasce antológico. Senhor de escravos, ele se espanta com a situação atual de negros e pobres. Acolhido por Eliseu (Milton Gonçalves), um catador de recicláveis, ele se revolta ao vê-lo puxar uma carroça “como besta de carga” para catar lixo. “Belíssima abolição, essa!”, diz, acrescendo que não deixaria um escravo seu fazer esse trabalho. “Se assim é o futuro, muita coisa precisa mudar.” Deveras.
Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2018, edição nº 2597