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Um tiroteio por dia

Espremida entre favelas disputadas por traficantes e milicianos, a Praça Seca, “laboratório” da intervenção federal no Rio, tem uma rotina dramática

Por Luisa Bustamante Atualizado em 15 jun 2018, 06h00 - Publicado em 15 jun 2018, 06h00

Em plena manhã de segunda-feira, ao menos vinte bandidos armados apontam seus fuzis para os motoristas e param o trânsito no corredor BRT Transcarioca, um dos pontos mais movimentados da Zona Oeste do Rio de Janeiro, por onde trafegam 230 000 pessoas por dia. A pé e em dois carros, eles fogem depois de um tiroteio que se prolonga madrugada adentro, aterrorizando os moradores da Praça Seca, área de classe média de Jacarepaguá que abriga quadrilhas em pé de guerra. Viver nesse pedaço carioca virou um pesadelo: ali, registra-se a média de um tiroteio por dia, a mais alta da cidade. Há um mês, o cenário de embates ganhou novo integrante: patrulhas do Exército fazem do local um “laboratório” da intervenção federal na segurança pública do Rio, em vigor desde fevereiro. A intenção dos interventores é testar lá estratégias que combinam patrulhamento, operações e ações sociais durante um período. Na Praça Seca, porém, nada mudou até agora.

O pano de fundo do faroeste na região é, como sempre, a disputa de território por bandos inimigos. As favelas ficam a menos de 1 quilômetro de condomínios de classe média. Há, de um lado, a da Chacrinha, dominada por milicianos, e, do outro, a do Bateau Mouche, controlada pelo Comando Vermelho, a maior das três facções de traficantes do estado. A área estava quase toda nas mãos de milicianos até fevereiro, quando o Batô, na gíria local, foi tomado pelo tráfico e a fuzilaria explodiu.

Em 19 de maio, os militares fizeram sua primeira operação no lugar, que resultou em oito mortos, entre eles o chefão do tráfico da Praça Seca, Sérgio Luiz da Silva Júnior, conhecido como Da Russa. Os bandidos se recolheram, mas bastou a tropa ir embora para a normalidade — no caso, o terror — se reinstalar. Na entrada do Bateau Mouche, motoristas voltaram a cumprir a ordem pintada no muro de “acender a luz do salão e abaixar o farol”. Barricadas ressurgiram para restringir a circulação e os tiroteios recomeçaram. Em 24 horas, três cadáveres foram depositados em frente a um supermercado (transformado em ponto já chamado de “funerária”), um deles carregado por mototaxistas de colete.

Terror - Morador das vizinhanças do Bateau Mouche: “Não saímos de casa. Tem uma boca de fumo em cada esquina” (Fabio Gonçalves/.)

Além do patrulhamento diário, o Exército fez até agora duas operações com a Polícia Militar e uma ação social de prestação de serviços aos moradores. Uma das incursões envolveu mais de 1 300 homens e teve um resultado modesto: dois presos, além de duas pistolas, munição e uma quantidade não informada de drogas apreendidas. “Primeiro, estabilizamos a área, depois nossos homens dão apoio ao patrulhamento do batalhão local”, explicou a VEJA o porta-voz do braço operacional do Comando Militar do Leste, coronel Carlos Frederico Cinelli. Na Praça Seca “estabilizada” ocorreram nove tiroteios nos últimos quinze dias.

A reportagem de VEJA esteve lá em cinco ocasiões. A constatação é que o início das operações militares não impediu os traficantes de continuar a praticar seus crimes. Eles apenas começaram a agir mais discretamente. Em vez de fuzis, agora carregam pistolas, e a droga passou a ser entregue ao comprador dentro de uma pequena caixa. Para os moradores, a vida também não melhorou. “Não saímos mais à rua. Tem uma boca de fumo em cada esquina”, conta um morador que não quis se identificar. Como a guerra entre bandidos segue firme, os milicianos estão cobrando em dobro pelos serviços clandestinos de segurança, gás, água, TV a cabo e internet, a fim de reforçar o caixa.

Rotina - Cena recorrente: mototaxistas deixam cadáver na “funerária” (Fabio Gonçalves/.)

Primeiro laboratório da intervenção, a Vila Kennedy, também na Zona Oeste, foi retomada por traficantes assim que os militares deram a experiência por encerrada; passados 24 dias, consideraram que o aumento da “percepção de segurança” dos moradores justificava a saída. “Operações nas favelas trazem relativa calma, mas não se sustentam”, explica Robson Rodrigues, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj e ex-chefe do Estado-Maior da PM do Rio. Em plena intervenção, os bandidos continuam agindo à vontade. Na semana passada, depois de um confronto com rivais em uma favela da Zona Sul, traficantes esconderam fuzis, pistolas e granadas na mata no Morro da Urca, aos pés do Pão de Açúcar e ao lado de um quartel do Exército. Três foram presos ao tentar recuperar o armamento.

O propósito oficial da ação do Exército é ajudar a melhorar a gestão, os equipamentos e a estrutura da polícia. São iniciativas necessárias, mas não bastam. “O caminho mais eficaz seria sufocar as atividades ilegais que sustentam o crime: o tráfico de drogas e a exploração de serviços clandestinos”, diz Rodrigues. Enquanto a intervenção federal não mostra a que veio, a Praça Seca continuará a ser uma triste lembrança de que um país não precisa estar em guerra para perder a paz.

Com reportagem de Bruna Motta

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Publicado em VEJA de 20 de junho de 2018, edição nº 2587

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