Um outro Brasil
Em obra de fôlego, Jorge Caldeira percorre a trajetória econômica do país e descobre razões para otimismo — na iniciativa popular, não no desmando estatal

Todos temos uma imagem mental simplificada da história do Brasil, aprendida nos bancos escolares e nos clássicos que os inspiram. Do ponto de vista econômico, essa história é basicamente assim: o Brasil nasceu como um país de exploração da terra e do trabalho escravo visando à exportação de matérias-primas. Senhores de engenho (ou cafeicultores) e escravos representavam as duas classes sociais. No campo da política, um povo passivo e incapaz de se governar. Em História da Riqueza no Brasil, Jorge Caldeira nos traz um outro olhar. Passando por todos os períodos de nossa trajetória, realça aquilo que a narrativa oficial omitia, às vezes por pura carência de documentação. A história do Brasil aqui aparece pelo avesso: centrada na maioria de indivíduos livres, empreendedores e pequenos produtores rurais. Filhos de uniões entre portugueses, índios e negros libertos — ou seja, nem latifundiários, nem escravos — compunham a maior parte da população, sendo que menos da metade deles era branca. Na data da abolição, os escravos compunham 5% da população brasileira; os grandes fazendeiros, uma minoria ínfima; o resto era de cidadãos livres comuns, dos quais pouco se fala. O crescimento econômico — notável em quatro dos cinco séculos de nossa história — deveu-se antes de tudo a esses indivíduos livres, que constituíam o mercado interno em expansão. Eram também autônomos na construção de governos democráticos locais, como a Câmara de Vereadores de São Paulo, que existe desde o século XVI. Aliás, houve eleições democráticas (embora imperfeitas: só homens alfabetizados votavam) em nível municipal durante toda a história brasileira, com exceção do breve período do Estado Novo.
A história estuda o passado, mas nem por isso seu objeto é imóvel. Novas fontes e tecnologias permitem rever o que achávamos saber. Caldeira é capaz de contrariar a narrativa-padrão justamente porque tem acesso ao processamento digital de dados dispersos — como censos — e consegue assim estimar, ainda que de forma imprecisa, as magnitudes da nossa economia e de seu crescimento, tarefa difícil se temos em mente que por grande parte da história a moeda corrente (metais preciosos) foi muito escassa.
O Brasil retratado pelo historiador é filho da primeira expansão imperial portuguesa, de caráter “laico, mercantil e universalista”, e da cultura tupi. Mas, para compensar alguns reveses em suas ambições globais e salvaguardar seus preciosos segredos de navegação, o Estado português reverteu para uma orientação conservadora, agrária e religiosa (inquisitorial). Assim, reprimiu o avanço do saber e das letras entre nós (tipografias eram confiscadas até o século XIX) e esmagou as tentativas de progresso manufatureiro, que contudo puderam prosseguir no interior, mais distantes do poder imperial lusitano.

Longe do poder central, nossa população empreendia, criava e se miscigenava. O crescimento econômico da colônia era superior ao da metrópole. Em nossa independência, tivemos a sorte de ter como patriarca alguém como José Bonifácio, que, de forma visionária, enxergou na mestiçagem do povo um ativo, e não uma fraqueza do Brasil. Soube ele também criar um modelo de Estado mestiço, unindo o princípio iluminista do poder que emana do povo com características da monarquia absoluta. A obra política da independência foi bem-sucedida em manter o país de dimensões continentais unido, mas economicamente, argumenta Caldeira, o século XIX foi de estagnação. Nosso império não estava à altura dos desafios produtivos da era da industrialização, e, com sua tentativa fracassada de centralizar o comando e microgerenciar a economia, ficou para trás.
O período inicial da República viu um crescimento estrondoso. O Brasil estava mais uma vez pronto para alçar voo, mas a persistência de um imaginário conservador e dirigista sempre esteve ali para nos segurar. Entre altos e baixos, esse Estado centralizador, repressor e controlador — que se reeditou com Getúlio e com os militares — continuou a atrasar o progresso.
Caldeira retoma temas de sua obra anterior: o papel decisivo da cultura tupi em nossa formação, a prevalência da pequena propriedade produtiva e empreendedora, o mercado interno como motor do crescimento. A diferença está na articulação de uma grande história, com 600 páginas. A leitura nunca é árida, pois estamos sempre dialogando com personagens marcantes. No campo das ideias, que não é propriamente seu foco, poderia haver mais cuidado. Por exemplo: Caldeira atribui a Aristóteles uma teoria política simplista de monarquia absoluta e manutenção da escravidão, e vê a concepção aristotélica de mundo como responsável pelos desmandos reacionários do Estado português. Isso não é justo com um pensamento tão rico, que influenciou muitos iluministas e liberais. Do ponto de vista econômico, seria interessante tentar distinguir crescimento sustentável de surtos de expansão artificial. Sempre que a moeda se tornou abundante e o crédito barateou, o país cresceu, e Caldeira retrata esses momentos com imenso otimismo. Mas hoje, vivendo justamente a ressaca de uma experiência dessas, está claro que nem todo crescimento fácil vem para ficar.
Seja como for, Caldeira nos dá elementos para refundar a identidade nacional: não mais apenas o Brasil da carência, da exploração, da corrupção e da pobreza, mas um país dotado de imenso dinamismo interno e capacidade de crescer em meio a adversidades. É nesse Brasil informal e criador que mora nossa força. Falta abraçá-la e se abrir ao mundo. Fechamos o livro, mas o país continua aí, pronto para dar um passo além.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2017, edição nº 2554