Quando se devotam à escrita, chefes de Estado geralmente produzem livros de memórias, diários editados, análises da conjuntura nacional ou mundial — volumes de grave e irretocável compostura. Por mais concupiscente que tenha sido o autor na vida privada ou no exercício de seu cargo, não se lerá, no típico livro presidencial, sobre certos atributos femininos. Mas compostura nunca foi o forte de Bill Clinton: em seu mais recente livro, lemos sobre uma mulher — uma assassina profissional — cujo decote ousado permite “que seus meninos balancem o suficiente para criar uma visão memorável”. Lançado mundialmente na segunda 4, O Dia em que o Presidente Desapareceu foi escrito pelo ex-presidente americano a quatro mãos com James Patterson, autor que é uma usina de best-sellers.
Trata-se de um thriller, com todas as convenções do gênero: narrativa ágil, capítulos breves que se encerram com promessa de mais ação na página seguinte, emoções superficiais expressas em clichês como “estômago embrulhado” e “frio na espinha”. Fora os “meninos” balouçantes, não há sexo. Ação não falta: o herói é Jonathan Lincoln Duncan, um presidente (democrata, fica óbvio, embora os autores não nomeiem expressamente seu partido) que, no esforço de conter um atentado cibernético que ameaça lançar o país no caos, sai da Casa Branca para se encontrar com um informante misterioso e acaba até trocando tiros com mercenários.
Duncan, o presidente fictício, é um político honesto, reto, com sensibilidade social — mas permite-se certo pragmatismo cínico ao lidar com países aliados que não têm grande apreço pelos valores democráticos, como a Arábia Saudita (a Rússia, com um presidente que tem outro nome mas lembra muito Vladimir Putin, ainda é o Império do Mal de que falou Reagan). No front interno, o presidente da Câmara dos Representantes quer o impeachment de Duncan — por razões de segurança nacional, e não por envolvimento sexual com uma estagiária da Casa Branca, como aconteceu com o presidente-autor. Aliás, em uma entrevista televisiva para promover o livro, Clinton deparou com perguntas sobre seu já antigo caso com Monica Lewinsky. Admitiu que, embora tivesse pedido desculpas públicas pelo affair, nunca se desculpou pessoalmente com a ex-amante. Coube a Patterson mudar o tema da conversa.
O Dia em que o Presidente Desapareceu é leitura leve, em geral divertida, embora se arraste em algumas passagens. A tradução brasileira tem um lance curioso: a vice-presidente Kathy Brandt é referida como “vice-presidenta” — heterodoxa escolha gramatical que foi uma das marcas do inesquecível estilo de Dilma Rousseff.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586