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Um grito ecoa na avenida: CHEGA!

Protesto e indignação tomaram conta do Sambódromo. Em pleno ano de eleição, especialistas em política dizem que pode ser o começo de uma temporada quente

Por Luisa Bustamante, Maria Clara Vieira Atualizado em 30 jul 2020, 20h27 - Publicado em 16 fev 2018, 06h00

Os enredos de escola de samba do Rio são, por tradição, celebrações épicas de lendas, de figuras do folclore, de acontecimentos históricos e de tudo que favoreça o brilho e a opulência típicos dos desfiles na Sapucaí. Questões políticas só comparecem raramente, com discrição, como convém a agremiações movidas a dinheiro público, patrocínios e governantes amigos. Pois este ano não foi nada igual àqueles que passaram. Com pouca verba e sem costas quentes, as escolas optaram por temperar a exaltação com a voz rouca das ruas, rodaram a baiana da indignação e fizeram do Sambódromo uma caixa de ressonância da insatisfação popular com os governos, os políticos e a corrupção. Em pleno ano eleitoral, a revolta coreografada e celebrada na passarela é um sinal nítido do humor da população: ela está farta.

“Oh, pátria amada, por onde andarás? Seus filhos já não aguentam mais! Você que não soube cuidar, você que negou o amor, vem aprender na Beija-Flor”

Beija-flor, 'Monstro É Aquele que Não Sabe Amar (Os Filhos Abandonados da Pátria que Os Pariu)'

A folia se encerra definitivamente neste sábado 17, no desfile das campeãs, mas a grande maioria dos quinze cientistas políticos e historiadores ouvidos por VEJA não tem dúvida de que o descontentamento captado na festa é um prenúncio do clima que deverá prevalecer na campanha eleitoral deste ano — embora dois dos quinze estudiosos consultados por VEJA acreditem que a indignação tenha acabado na Quarta de Cinzas. “Se tudo permanecer como está, com políticos acusados de corrupção e protegidos por imunidade, a população chegará para votar ainda mais desesperançada”, diz Carlos Montenegro, presidente do Ibope. “O que se viu no Sambódromo foi a fermentação dos sentimentos da sociedade neste período difícil. As escolas não produzem insatisfação, só expressam um sentimento acumulado”, analisa o cientista político Antonio Lavareda. “A Sapucaí de 2018 dialoga com o grito das ruas de 2013.” É o mesmo raciocínio do professor José Álvaro Moisés, da USP. “Dada a gravidade da situação que vivemos, seria inevitável que essa crítica viesse à tona. Portanto, não surpreende”, diz ele.

Nesse ambiente difuso, nem esquerda nem direita podem apresentar-se como redentoras na avenida. A campeã Beija-Flor, com sua devastadora denúncia da violência e da corrupção, criticou o petrolão patrocinado pelo PT com uma imensa ratazana puxando um prédio da Petrobras, que se transformava em favela. A leitura é inequívoca: o PT dos pobres transformou-se num criador de miséria com sua corrupção organizada. A Paraíso do Tuiuti, vice-campeã, retratou os manifestantes que vestiam camiseta verde e amarela e batiam panelas em 2016 como fantoches do grande poder econômico, simbolizado na avenida pelo pato amarelo da Fiesp. E, na crítica à reforma trabalhista, chegou ao desfile com uma caracterização implacável do presidente Michel Temer como “vampiro neoliberalista”, usando uma gola elisabetana feita com enormes notas de dólar. A Mangueira, a quinta colocada, espicaçou o prefeito Marcelo Crivella ao expô-lo como Judas num dos carros com uma provocação: “Pecado é não brincar o Carnaval”. Faz sentido a crítica aos dois lados do mundo ideológico: esquerda e direita, cada uma a seu modo e a seu tempo, mantiveram vivo o sistema que agora, apodrecido, não cessa de indignar os eleitores.

Viralizou nas redes – Temer como vampiro, “manifestoches” e carteiras de trabalho detonadas na Tuiuti: a segunda colocada trouxe um enredo repleto de críticas ao governo atual e ao movimento que o colocou no poder — mas, antes, não fazia nada disso para não “arranhar a relação” que tinha com o poder (Wilton Junior/Gilson Borba/Severino Silva/Estadão Conteúdo)

 

“Meu Deus! Meu Deus! Se eu chorar, não leve a mal. Pela luz do candeeiro, liberte o cativeiro social”

Paraíso do Tuiuti, 'Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?'

Convém manter viva a indignação quando se sabe que, numa contradição típica do país em que as exigências éticas se aplicam apenas aos outros, a Beija-­Flor tem como presidente de honra Anísio Abrahão David, bicheiro de 80 anos com seis passagens pela cadeia e condenações que somam 73 anos de prisão. Ele recorre em liberdade. Chega a ser cômico que sua escola faça uma defesa cerrada da ética. A própria Tuiuti, cujo carro alegórico matou uma mulher no Carnaval do ano passado, não é exatamente uma voz livre. Antes do desfile, seu carnavalesco, Jack Vasconcelos, deu uma entrevista em que admitia candidamente que, nos governos do PT, não fazia críticas para não “arranhar a relação” com o poder. Disse ele: “Enredos mais críticos não eram incentivados. Agora, com uma guerra declarada, temos uma abertura maior”. De fato, antes que a crise econômica se abatesse sobre o Brasil, e antes que o propinoduto de Lula fosse exposto, o tom dos enredos pendia para o ufanismo. O eco dos elogios subia vários decibéis quando a agremiação “homenageava” algum estado, país ou indústria que se propusesse a arcar com as despesas da festa. Tudo isso mostra que as escolas não devem ser confundidas com a guarda pretoriana da boa moral, embora tenham vocalizado um sentimento nacional com críticas à esquerda e à direita. “Esses protestos podem ser o estopim de algo maior, se os movimentos políticos souberem aproveitar a insatisfação com o status quo”, diz o filósofo Roberto Romano.

O desabafo no Sambódromo foi um desses momentos extraordinários em que uma manifestação artística anda de mãos dadas com o humor da sociedade. Sempre haverá quem goste e quem desgoste, especialmente num país rachado ao meio como o Brasil. Momentos como esse são raros, bonitos e pedem um olhar profundo, como sugere a Carta ao Leitor desta edição. Na história recente do Brasil, foi assim com o desfile dos feios, sujos e maltrapilhos de Joãosinho Trinta na Beija-Flor em 1989, ano de eleição presidencial, a primeira depois da ditadura militar. Foi assim também, um pouco antes, com o definitivo samba Vai Passar, de Chico Buarque, que em 1984 revelou “a nossa pátria mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / em tenebrosas transações” — versos que se consagraram como hino do fim da festa de um regime autoritário, já na antessala das Diretas Já.

“Vem vadiar por opção, derrubar esse portão, resgatar nosso respeito. O morro desnudo e sem vaidade, sambando na cara da sociedade, levanta o tapete e sacode a poeira”

Mangueira, 'Com Dinheiro ou sem Dinheiro, Eu Brinco!'

Numa avaliação técnica, a apresentação da Beija-Flor foi apenas mediana. Mas, no calor da empolgação popular, atraiu também o interesse dos jurados. Pode-se dizer o mesmo do desempenho da Tuiuti, que não se superou em originalidade nem criatividade em nenhum quesito. Na Beija-Flor, além do ratão da Petrobras, uma ala mostrava a “turma do guardanapo” do ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso. “Não foi, nem de longe, o melhor desfile da escola”, avalia a doutora em história Rosa Maria Araújo, presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio. “O protesto político passou à frente da estética e da técnica.” Isso também ocorreu com a Portela, que citou a questão dos refugiados, e com o Salgueiro, ao invocar a Pietà, de Michelangelo, com mãe e filho negros, para denunciar a violência.

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A cada protesto, o povo se levantava, aplaudia e gritava. “Resta ver como as pessoas vão canalizar a insatisfação de forma produtiva”, pondera o sociólogo Simon Schwartzman. Com o público de cerca de 140 000 pessoas nas arquibancadas multiplicado pelos telespectadores da transmissão ao vivo (35 milhões só no Rio e em São Paulo), os desfiles da Sapucaí fizeram ferver as redes sociais. A Paraíso do Tuiuti foi parar nos trending topics do Twitter como o assunto mais comentado no Brasil e o segundo no mundo. “Criou-­se, de novo, o embate entre esquerda e direita, o que me preocupa”, aponta o cientista político Ricardo Ismael. “Enquanto não sairmos dessa agenda de confronto, o país não andará.”

Samba-desabafo – Mendigos na avenida em 1989: gênio de Joãosinho Trinta (Sebastião Marinho/Agência O Globo)

Talentosos na hora de detectar por quem os pandeiros vibram, os políticos sempre fizeram da Sapucaí uma vitrine — Cabral e Lula adoravam os camarotes, Dilma posou até com Madonna e — inesquecível — o então presidente Itamar Franco posou ao lado de uma modelo sem calcinha. Desta vez, quem não está na prisão se recolheu. Temer não apareceu. O governador Luiz Fernando Pezão passou o feriado em Piraí, sua cidade natal. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, limitou-se a postar, na sexta 9, mensagem contra o álcool ao volante, tendo ao lado dois humanos fantasiados de foca. Queria dizer “foca na vida”. A postagem rendeu trinta comentários. Crivella divulgou um vídeo que o mostra em frente ao centro espacial europeu na Alemanha, onde esteve “a trabalho”, disse, buscando soluções para um Rio em convulsão. A honrosa exceção foi o prefeito de São Paulo, João Doria, que bateu ponto em três carnavais: no Sambódromo paulista, na Sapucaí e no desfile de trios elétricos em Salvador. Recebeu, alternadamente, aplausos, vaias e indiferença, sobretudo na foto que insistiu em fazer ao lado de um contrariado Zeca Pagodinho. Os políticos foram expulsos da avenida.

Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570

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