Carta ao Leitor: Tiro no pé
Caso o país estivesse vacinando seus cidadãos, com um calendário programado, a recuperação em V já estaria em um estágio mais avançado
Semana sim, na seguinte também, o presidente Jair Bolsonaro não perde uma oportunidade de fazer ecoar sua porção fanfarrona. Entrou para a história, tristemente, o “e daí?”, como resposta a um jornalista que lhe perguntou sobre os sucessivos recordes diários de mortes em decorrência da pandemia. Em outra oportunidade, como se fosse um alerta, disse que o Brasil precisaria deixar de ser “um país de maricas” diante da disseminação do vírus. Recentemente, outra escorregada (desta vez, sobre outro assunto). Ao lado da claque nos portões do Palácio da Alvorada, disparou mais uma das suas: “O Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”. São frases tolas, ruins mesmo, e invariavelmente descabidas — mas logo vem alguém, explica o que pode ser explicado e a vida segue, alheia às estultices do presidente.
Evidentemente, o falatório destrambelhado atrapalha, seria 100% dispensável, mas muito pior tem sido a incompreensível inação em um capítulo fundamental para o país: a vacinação da população brasileira contra a Covid-19. Esta, sim, pode ter consequências nefastas, arruinando a atividade econômica e adiando a nossa volta à normalidade. O curioso é que, desde o início, Bolsonaro apontou a economia como uma prioridade para o não estabelecimento de isolamentos rigorosos, os chamados lockdowns, que resultariam em perdas financeiras insustentáveis e desemprego. E, agora, quando a única ferramenta confiável — a vacina — está disponível, ele a boicota, apenas para atender aos interesses da turba fanática que transformou medicina em ideologia. Trata-se, no dicionário popularesco das hostes bolsonaristas, de um autêntico “tiro no pé”.
Caso o país estivesse vacinando seus cidadãos, com um calendário programado e compra de imunizantes suficientes, a recuperação em V, da qual tanto fala o ministro Paulo Guedes, já estaria em um estágio mais avançado. Bolsonaro, no entanto, insiste em fechar os olhos aos avanços da ciência, preferindo dar as mãos a um conservadorismo retrógrado, cuja ambição é implementar uma agenda medieval em questões comportamentais, como mostra a reportagem da página 26. Nessa toada, corre o risco de seguir o caminho de Donald Trump, que termina seus dias na Casa Branca de modo melancólico, em guerra contra as instituições, manipulando grupos de desvairados e bárbaros que invadiram o Congresso americano, como detalha outra reportagem desta edição, a partir da página 40.
Ao apelar para a emoção e não para a razão, para a ignorância e não para o conhecimento, ao cultivar teorias de conspiração, políticos de matriz populista como Trump e Bolsonaro ganharam espaço nos últimos anos — e o truque de ilusionismo que puseram em prática ganhou apoiadores, varreu o mundo, envergonhou a América. Funcionou, enfim. Mas felizmente pode estar com os dias contados. O novo coronavírus, para além de todas as revoluções provocadas, feriu também essa linhagem da política. A inclinação da sociedade em dar um basta aos ataques do populismo à democracia é uma das 21 tendências para 2021 selecionadas por VEJA a partir da página 46. Que elas façam do ano-novo um período de fortalecimento democrático — de preferência, com vacina e com a recuperação econômica.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720