Terror no Ceará
Cabeças cortadas, carro-bomba, horror pela internet.. São cenas da guerra de facções que culminou na maior chacina do estado nordestino
Apenas 11 quilômetros separam a Avenida Beira-Mar, o metro quadrado mais caro de Fortaleza, da linha de frente de uma guerra entre quatro facções que fez de 2017 o ano mais violento já registrado no Ceará. Foram 5 134 mortos, o maior número desde o início da tabulação, em 1997. O horror promovido pelo crime organizado na periferia da capital remete à brutalidade pela qual ficou conhecido o Estado Islâmico nas guerras do Oriente Médio. As táticas do terror islâmico inspiram o mais sanguinário dos grupos cearenses, os Guardiões do Estado (GDE). Imagens de corpos decapitados e de suas vísceras arrancadas do tronco são divulgadas em vídeos pelo WhatsApp e pelo YouTube, como forma de intimidação. Enquanto isso, nos muros dos bairros para onde a facção avança, impõe-se uma disciplina rígida. “Se rouba nazárea morre” (“Se roubar nas áreas, morre”), avisa a pichação em uma escola no Jardim Barroso, um dos bairros mais atingidos pela disputa do comércio de drogas.
Os GDE são apontados como responsáveis pela maior chacina da história do Ceará, ocorrida na madrugada do sábado 27 de janeiro. Os criminosos chegaram em três carros, por volta da meia-noite e meia, à casa noturna Forró do Gago, na Rua Madre Tereza de Calcutá, no bairro Cajazeiras, área de domínio do Comando Vermelho (CV). Durante trinta minutos, dispararam a esmo. Mataram seis rapazes e oito garotas, duas delas menores de idade. Seis feridos foram encaminhados a hospitais, incluindo um menino de 12 anos, ajudante do pai, que vendia salgados em uma barraquinha na porta do estabelecimento. Horas depois do crime, um vídeo em que supostos integrantes da facção comemoram o banho de sangue passou a ser divulgado por meio de mensagens de celular. Dois dias depois, na superlotada cadeia pública de Itapajé, a 124 quilômetros de Fortaleza, o CV exterminou dez detentos ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC), organização originária de São Paulo que mantém uma aliança instável com os GDE. Oito detentos ficaram feridos. O estado removeu 44 presos sobreviventes para outras unidades e prendeu sete suspeitos pelas mortes no forró.
VEJA acompanhou a rotina dos bairros de Fortaleza dominados pelo tráfico durante cerca de vinte dias, em três períodos, entre novembro de 2017 e janeiro deste ano, antes de as chacinas projetarem nacionalmente a grave situação de violência no Ceará. As vendetas, concentradas ao sul da Arena Castelão, reformada para a Copa do Mundo, são de uma brutalidade espantosa. No começo de janeiro, Francisco Afonso dos Santos, de 25 anos, chegou de carro para visitar a mãe na Granja Portugal. Levou sete tiros na cabeça e um em cada perna. Em outro episódio, no Jardim Palmeiras, Francisco Carlos Oliveira, de 33 anos, foi executado com três disparos no crânio vindos de duas pistolas, uma .380 e uma .40 (exclusiva da polícia). Os criminosos cravaram uma faca de combate de aço inoxidável em um dos olhos da vítima.
As facções presentes na cidade fazem uma espécie de loteamento dos bairros — uma única avenida pode dividir os domínios da Família do Norte (FDN) e do Primeiro Comando da Capital (PCC). A vida dos moradores das regiões por onde o crime avança torna-se um inferno imediato. Os bandidos marcam, por recados pichados nas fachadas, os imóveis que devem ser desocupados do dia para a noite. “Eu fazia faculdade e tinha casa própria, agora vendo trufas para bancar o aluguel”, conta uma jovem expulsa de casa com os pais.
Resistir não é uma opção. Em dezembro, o comerciante Antônio Josenildo fechou rapidamente as portas de aço de seu Mercado Novato para se proteger de um tiroteio. Um membro dos GDE pediu abrigo, mas não foi atendido. Na véspera do Ano-Novo, Josenildo foi arrancado de casa por quatro homens armados para ser executado com marteladas na cabeça, diante da família, no meio da rua. Quatro dias depois, os moradores do quarteirão levaram um susto ao acordar: as ordens de despejo estavam pichadas em seus muros. Só do Jardim Barroso, território dos GDE, foram evacuadas cerca de 500 pessoas, que agora aguardam recolocação em conjuntos habitacionais longe da disputa territorial. As facções concorrentes agem de forma semelhante. Boa parte dos 26 blocos do conjunto habitacional Novo Jardim Castelão, construído no entorno do estádio pelo programa Minha Casa Minha Vida, foi invadida antes de ficar pronta. Dominado pelo Comando Vermelho, que cobra uma taxa de proteção dos imóveis, o local tornou-se um dos pontos mais tensos do confronto com os GDE, que atuam a 500 metros dali.
A rotina das escolas é duramente afetada. Alunos não frequentam instituições fora do alcance da quadrilha que comanda os bairros onde moram. Docentes precisam circular com os vidros do carro abertos e um adesivo com a palavra “educador” (profissionais de saúde estampam “médico” ou “enfermeiro” nos veículos). Em dezembro, integrantes dos GDE hastearam uma bandeira da facção na caixa-d’água da Escola Municipal Bernadete Oriá, que tem cerca de 1 000 alunos, do ensino fundamental ao adulto.
A escolha do Ceará como base preferencial dessas organizações tem uma explicação geográfica. Com dois portos e maior proximidade com o continente africano, o estado virou um ponto de remessa de cocaína para Cabo Verde, para dali ser enviada para a Europa. Nos anos 80, foram detectadas conexões com cartéis colombianos. Nas últimas décadas, o PCC criou ali sua principal base fora de São Paulo e do Paraná. Em 2005, Fortaleza foi palco do assalto ao Banco Central, o maior do gênero já realizado no Brasil, no qual se roubaram 164,7 milhões de reais. A liderança era de Alejandro Herbas Camacho, irmão de Marcola, o principal líder da facção paulista. Os Guardiões surgiram por volta de 2011, de uma costela do PCC. Pequenos bandos, alguns ligados a uma torcida de futebol, rebelaram-se contra a taxação imposta pelo grupo. “Ao contrário do PCC, os GDE não cobram mensalidade de seus membros, o que contribuiu para seu crescimento. Hoje, eles são maioria nos presídios”, diz César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará. Seus integrantes avançaram com o terror na zona central da cidade a partir do fim de 2016, em protesto contra o plano do governo do estado de bloquear o sinal de celular nas celas. Incendiaram ônibus e puseram um carro-bomba em frente à Assembleia Legislativa, mas não houve explosão.
No complexo sistema penitenciário cearense, há indícios de conexões com o tráfico mexicano. Na última semana de dezembro, a Polícia Federal prendeu no Beach Park, na região metropolitana de Fortaleza, o traficante José González Valencia, um dos chefões do cartel de Jalisco Nova Geração, feroz organização de narcotráfico do México. O episódio levantou suspeitas de que ele não estava ali apenas a passeio. Segundo um funcionário do governo americano ouvido por VEJA que já trabalhou no Brasil e na Bolívia, as autoridades dos Estados Unidos reconhecem que o cartel internacionalizou suas operações em países como Brasil e Argentina.
Mesmo com conexões que incluem, segundo investigações, a máfia italiana, o tráfico no Ceará tem armamento leve — pistolas 9 milímetros .38, .380. O ritual de iniciação dos criminosos começa cada vez mais cedo, aos 9 anos. “A maioria dos integrantes dos GDE está em plena adolescência”, diz o sociólogo Ricardo Moura, pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
A polícia, por sua vez, lida com estrutura insuficiente. Durante a noite de 18 de janeiro, VEJA acompanhou uma ronda comandada por um coronel da PM. Apoiado apenas por três policiais e carros do Detran, ele entrou em uma favela com o objetivo, disse, de “incomodar a bandidagem”. O pequeno destacamento, armado com carabinas e pistolas Taurus .40, efetuou a prisão de três pessoas: um rapaz procurado por roubo, sua companheira e um homem alcoolizado que mostrou sua peixeira aos policiais enquanto avisava, trôpego: “Estou armado”.
O secretário de Segurança Pública e Defesa Social, André Costa, tem entre os planos uma reprodução “melhorada” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro. “Lá, faltou ação conjunta do estado. Pretendemos coordenar esforços com as outras secretarias e as agências da prefeitura para suprir as necessidades de segurança da população”, afirma. No fim de 2017, 730 homens foram contratados pela Polícia Civil para substituir profissionais aposentados.
Enquanto nada muda, nem os enterros estão livres da barbárie. Um dia após o último Natal, criminosos interromperam o velório de um homem envolvido com o tráfico. Renderam familiares e amigos e arrastaram o caixão até o meio da rua para incendiar o cadáver. No Ceará de hoje, até honrar os mortos pode ser perigoso.
Com reportagem de Leonardo Coutinho, de Washington
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2018, edição nº 2568